Acordou, não sabia se dum pesadelo ou só da realidade que lhe destinaram sem que a reconhecesse sua. Ainda. Levantou-se a custo, à medida que se levanta, tudo regressa com a certeza do que se passou, não tinha vivido o pesadelo a dormir, mas acordada, e sem anestesia. Passou pelo caixote fechado que guardava o vestido branco ainda por despir de planos, projectos e felicidade desenhada. Olha-o e ouve a alma esgaçar mais um pouco ao golpe da incompreensão ainda quente. Os passos sofrem uma arritmia e, de fugida, entra na casa de banho, liga a luz do espelho. Quando se viu, as lágrimas começaram a correr, lentamente primeiro, depois em convulsões de corpo inteiro. A alma não sossegava, gritava, esperneava, contorcia-se por dentro da pele que parecia recusar, como se também ela se rejeitasse por dentro dela, à luz da imagem que até o espelho devolvia. Não sabia o que fazer com ela, com o corpo dela, com a alma que lhe tinham dado, que a vida tinha esculpido primorosamente, para, vagarosamente, a destruir toda, inteira, à força de picareta. Hoje era mais um dia de destruição. Teve raiva de si, teve raiva dele, teve raiva da vida que os juntou para nada, ou para pior que nada, para aquilo. Para o desacontecer dum amor que só a ela tinha acontecido. Há uma semana, a uma noite de tudo, um bilhete deixado naquele mesmo espelho roubou-lhe toda a vida até ali e toda a que dali lhe tinha sido prometida. "Não sou capaz, não consigo fazer isto" - uma cobardia inteira numa frase só de fragmentos por explicar, assim, sem mais nada, sem mais uma palavra além daquelas sete - uma por cada ano que apagou, que roubou à ilusão.
Porquê aquilo? Porquê assim? O que haveria de errado com ela, com aqueles sete anos? Com a felicidade que sentia ser partilhada?
Levou as mãos à cabeça, de cabeça perdida, ao cabelo que ele tanto gostava, era o que mais gostava nela, tinha-lhe dito vezes sem conta, os seus cabelos de fogo, compridos, brilhantes, de ondulação larga, que ele dizia ser como um mar calmo e fundo de intensidade, onde navegava pelas estrelas dos seus olhos e mergulhava em profundidade de amor. Ela lembrou-se disto e, sem querer, sorriu. Sem querer, sem aviso, sem notar, sem ter havido um esboço que o adivinhasse, como a desavisada plenitude que a tomava quando lhe habitava o colo doce como casa própria e certa, onde a espontaneidade era o ar que se respirava sem se pensar nisso, onde o único esforço era parar de rir ou mimar ou esticar as noites até ao limite do sono e das obrigações do mundo. Mas riu-se, o espelho denunciou-a, encriminou-a, devolveu-lhe o sorriso que não quis dar, que não queria dar, que o passado lhe rasgou da boca e que aquele bilhete selou como morto. Um bilhete em troca de sete anos.
Fecha os olhos e leva as mãos à cabeça, aquele sorriso acordou aos berros um grito mudo por dentro, tão intensamente sentido, que a ressonância na alma estilhaçou as garrafinhas de fino vidro onde se quiseram trancar os sentimentos como essências que se querem esquecer. Negar se possível. Matar se impossivel.
Quando tira as mãos das ondas ruívas só navegadas por quem, afinal, não as quis, vieram-lhe juntas, as duas mãos, cheias de cabelos - os seus cabelos, os cabelos dele. Ficou atónita, não percebia, não entendia o que se passava. Seria um pesadelo? Será que desta vez a realidade lhe escapava das mãos, e nao os cabelos, e iria acordar? De boca ainda aberta, e olhos por acreditar, voltou a passar as mãos pelo cabelo, agora com intenção, com ganas de perceber o que se passava na sua cabeça, na sua cabeça perdida. Mais uma vez os cabelos pareciam desistir, um a um, todos lhe vinham agarrados às mãos. Ela repetiu o gesto, uma e outra vez, e quando o espelho lhe deu a sua imagem completamente desgrenhada, meio careca e impotente inteira, desatou-se uma gargalhada de profundezas desconhecidas. Riu-se do fundo de si, riu-se de si, riu-se dele, riu-se da vida que, parada, a queria apanhar. Ria-se enquanto, agora propositadamente, tirava da sua cabeça todos os cabelos, despia-se daquele mar de fogo. Careca e resplandecente, olhou o espelho e não conseguiu deixar de se ver, finalmente viu-se despojada de tudo. Cada cabelo perdido como uma recordação arrancada pela raiz frouxa, cada frase, que guardava com o zêlo que tratava do cabelo que era dela mas para os olhos dele, reduzida a cinzas. Libertou-se de tudo. Ao contrário de Sansão, em que o cabelo lhe levou a força, a ela o cabelo levou-lhe a fraqueza, a sua maior e mais pungente fraqueza - a mais perigosa porque a tomava toda, de corpo e alma. Com o cabelo foram-se os suspiros, os choros, as perguntas infindáveis e os desesperos de querer ser amada por quem só lhe amava o fogo manso do cabelo, o calor da ondulação suave que parecia embalar-lhe o desejo, apenas isso. E nem isso.
Saiu de casa com ar triunfante, de sorriso estampado na cara toda, agora maior, enorme, até à nuca. Passou pelo porteiro, a quem caiu o queixo, ela levantou uma gargalhada e disse-lhe:
" Não se preocupe. Foi o desgosto que me levou o cabelo quando saiu. Se o vir por aí, em cabelos de fogo, diga-lhe que o fogo sou eu." - e riu-se, mais uma vez.
Parou em frente à porta de vidro - o sol invadia sem medo o chão, o tempo, o corpo -, enquanto se via reflectida em compasso maduro de renascimento procurou na enorme carteira, invariavelmente desarrumada, os óculos de sol, pô-los, e saiu para o mundo sem cabelo, sem fraquezas, sem precisar de defesas. Sentiu-se inteira, nua de medos, careca do desgosto que a fez perder o cabelo e despida do amor que lhe tinha feito perder a cabeça. A partir desse dia todas as provas de fogo eram jogadas em casa e a cobardia incinerada à primeira mansa desilusão.