terça-feira, 30 de agosto de 2016


Deixei o Flaubert, ao fim de trinta páginas não me prendeu a alma nem o tempo, abri o Mia Couto e achei que combinava com este sossego que chama a preguiça, com este silêncio que me adoça a solidão. 
Olho o céu para ver se há vestígios de fumo, e vejo que ainda há, mas fumo de fogo que já ardeu, baixo os olhos e reparo na chávena que reza baixinho, quase não a ouvia: 

"curação por curação/ Amor num troques o meu/ Olha que o meu curação sempre foi lial ó teu". 

E ponho-me a pensar na quantidade de erros... Não, não os ortográficos, os de vida, os de coração. Não se pede, nem diz, a ninguém que não nos troque, não por orgulho - embora se deva sempre ter uma medida onde caiba a dignidade - mas apenas porque não vale a pena, o amor não se pede, tal como não se exige. Depois porque ninguém fica com ninguém por lealdade - ou por agradecimento, ou por pena, ou por qualquer sentimento que queiram impingir como altruísta - até porque, geralmente, ou não é reconhecida, ou não é valorizada. E ainda bem neste caso. Ao lado do nosso coração devemos querer outro coração que nos queira, um que queira bater por nós e por estar ao nosso lado.
Do Mia já me pararam duas frases (pelo menos):

"A cicatriz tão longe duma ferida tão dentro: a ausente permanência de quem morreu." - não importa quanto tempo, não importa a distância do dia, do último dia, importa como nos está entranhada, bem dentro, essa ferida permanente duma ausência. De tantas ausências. De tantas e variadas mortes.

"Seu olhar parece mais um modo de escutar." - eu acho que sou assim escuto com os olhos também, como também falo com os olhos. Há conversas inteiras dentro dos meus olhos, dentro de cada olhar diferente que se tem com quem se olha, com quem vemos e ouvimos pelo olhar. O nosso e aquele que escutamos, e que talvez nos escute.
Tenho conversas inteiras no olhar que teimam em desabitar-me, em desabituar-me o olhar daquele vocabulário.

quinta-feira, 25 de agosto de 2016


... Encontrado por acaso e que me fez muito sentido. Se calhar só se consegue recomeçar mesmo quando não há qualquer esperança de continuar, quando está tudo quebrado, tudo fodido... quando nada resta senão recomeçar - não do zero mas do vazio.

terça-feira, 16 de agosto de 2016


Última noite, última meia garrafa. Quatro noites, duas garrafas, bebidas aos poucos entre pensamentos, cigarras e a lua. Sem horas mas com o meu tempo. Como agora, acabada de jantar quase à meia noite. Não sei o que me reserva o futuro mas estou cada vez melhor sozinha. Se algum dia encontrar alguém terá que ser alguém com quem eu possa estar sozinha ainda que a dois, assim, sem horários sem stresses. Estar como se estivesse sozinha sem estar, alguém que saiba estar sozinho comigo, sem me alterar os ritmos, sem me impor um compasso que me faça ansiar, que me faça exigir de mim comportamentos para eu evitar sentir que ele não está bem. Porque senão não fico bem, não estou solta, à vontade, eu. Que entenda, que goste do tempo sem horas, que saiba estar aqui sentado nos degraus do alpendre a ouvir a brisa a mexer as folhas, as cigarras a cantar o luar brilhante e uma vela a arder que dança à superfície dos corpos. Só isto. E um copo de vinho, ou os que forem, e beijos bebidos à sede do momento, a cada momento, no silêncio que não perturba, antes embala uma paz tranquila. Quase sábia. É tão bom estar à vontade das vontades.

quinta-feira, 11 de agosto de 2016


Está-se tão maravilhosamente bem aqui... A esta hora, por baixo dos pés descalços a tijoleira ainda está quente. Torna o caminhar confortável e aconchegante depois dum sol abrasador. A rua está sossegada, o cão já está aninhado, as estrelas hoje enrolaram-se no edredon de nuvens, não as vejo ainda que as saiba, como, afinal, em tantas coisas na vida, e eu estou aqui, assim, de vestido fino de verão, já sem cinto, sem nada, descalça, cheia de sonhos no corpo e vontades no coração. O verão tem destas coisas, convida a noite a entrar-nos no corpo, os olhos a beberem estrelas e o sossego da escuridão a embalar-nos o virar dos dias. Hoje, o corpo e a cabeça estão exaustos mas já só pensam na liberdade de tempo e de afazeres daqui a uns dias. Aqui estou sozinha, aqui, hoje, quero e gosto - apetece-me estar sozinha. Daqui a dias vou fazer caminhos para outras paragens onde o ar é diferente, as estrelas se juntam ao redor dum céu imenso, onde se vêem estrelas cadentes e manda a tradição - ou só um amor descosido - se faz um desejo... E eu, agora, cada vez que vejo uma estrela cair sem ninguém a tentar agarrá-la e levá-la no bolso do olhar,  penso que é só um amor que deixaram cair e morrer, enquanto outros apaixonados desejam que nasça o amor eterno naqueles que amam... Uns caem para outros os desejarem. Talvez seja isso a vida, ou então são só as minhas estrelas cadentes particulares. Quem sabe?... A noite se souber não diz, guarda. Como se guarda um amor que se sente sem se ter.

quarta-feira, 10 de agosto de 2016

Sopra um vento quente, oiço as folhas secas no passeio a rolarem com a brisa e penso que há coisas em mim que não quero ouvir mais que não quero falar, raivas que me mordem minutos demais, revoltas que me cerram os dentes e ferram o silêncio que lhes quero dar. Não quero pensar em quem não me pensa, não quero sentir por quem nada sente. Quero dar silêncio ao silêncio que me doam e tanto me dói. Quero doar insignificância para quem sou insignificante. E quero fazê-lo como se não o fizesse, como se não me doesse. Levanto a cabeça e tento cheirar o aroma do calor, da brisa que me afaga os minutos aqui sentada. Aqui alapada neste silêncio que é prazer ao contrário do outro. Quero pensar que a noite foi boa, que o passeio foi simpático, que a conversa foi corrida, que quero sentir-me bem. Que quero gostar da vida assim, aqui, neste silêncio que as folhas que dançam lá em baixo me sussurram cá em cima. A vida tem de ser vivida com quem a quer viver connosco.
E daqui, donde parece que vejo a minha vida, há uma sensação de apaziguamento que vem de saber que dei tudo, que ninguém gostou ou gostará mais dele do que eu, e que qualquer um, com quem esbarre na rua, poderá gostar mais de mim do que ele. Que poderá vir a gostar.  Eu não perco amor nenhum por não o ter, apenas deixo de ter onde desperdiçar o meu.

sábado, 6 de agosto de 2016

Despedi-me dele como se não me soubesse despedir, entre um sorriso doce e a sensação que nunca saberei cuidar dele, ou parecer que sei, por muito que o ame e lhe queira o melhor. Por muito que fizesse tudo o que fosse possível fazer por isso. Ele à minha frente, com um calor que nos escorria pelas costas, mais vulnerável que os dias corridos o fazem conhecer, mas que eu reconheço no olhar solitário, tão apegado ao amor por quem gosta e de quem sempre cuida. Não se sente confortável na vulnerabilidade que esconde num olhar meigo. E eu apetecia-me abraçá-lo, mas não aprendi a abraçar o abraço que precisei  naquela altura, alguém tão grande, tão acima, tão pai sendo irmão. Tenho medo por ele, mas sei, sinto, que os meus braços são de bebé para o ajudar, para o proteger, para que a sua força os possa salvar de alguma coisa. Mas estendo neles, em qualquer abraço que lhe dou, todo o amor puro que conheço. E tenho.
Fiquei à espera que o comboio partisse, tinha-me dito que fosse embora, estava muito calor, mas queria-me lá, queria saber-me lá. E eu soube disso quando tentava descobri-lo dentro duma das carruagens com o comboio já em movimento e de repente vejo alguém a acenar-me um adeus alegre, eu não tinha ido embora, estava à espera de lhe entregar o meu. Entreguei, levou-o, há-de trazê-lo de volta.