domingo, 31 de dezembro de 2023

 311223

Hoje. É um número curioso: dois uns, dois dois e dois três. É só isso, curioso, nada mais. É também o último dia do ano, deste ano. Este ano que não me deixa saudades, mas deixa marcas profundas, e bastantes. Este ano que vai sempre fazer parte dos anos que não esquecerei. Ano de grandes perdas, de decisões pesadas, ano de riscos e de medos. Ano de assumir uma maturidade que me caiu pelos ombros e me mostrou pilares de que a vida é feita, e desfeita. Ano de me virar para dentro de outra forma, de explorar lados que nunca procurei... encontrei na meditação, e no yoga que já me acompanha há algum tempo, uma paz e uma liberdade que me ajuda.

Tenho algumas vezes tentado escolher uma frase para o ano que começa, um mote, um mantra talvez. Mas cruzei-me com esta frase há pouco e fez-me tanto sentido para resumir este ano, que em vez de escolher um começo, vou escolher um fim... que trará um qualquer começo que nem sequer quero ou consigo imaginar. Mas todo o fim é um começo, isso eu sei. " O sucesso não é definitivo,  e o fracasso não é fatal, é a coragem de continuar que conta." A coragem é uma palavra espinhosa para mim.  Não acredito em coragem não havendo alternativa, não havendo escolha, aí não penso que se trate de coragem. Coragem é ter escolha e escolher o menos fácil, escolher de acordo com o que está certo, o que é digno,  com a verdade, independentemente do caminho a percorrer para o conseguir, não pensar no que é mais cómodo ou fácil, pelo contrário ter consciência da dificuldade, mas ainda assim escolher essa via. Ter apenas um caminho: continuar...não é coragem, é sobrevivência, é falta de qualquer alternativa. E não me digam... ah e tal mas continua, não desistiu!... não? uma coisa não implica a outra, há tanta, mas tanta gente, que continua o caminho mas já desistiu... eu muitas vezes sou essa pessoa, acho. Não gosto de pensar isso, de dar a mão à palmatória, de pensar que houve pessoas que me estragaram irremediavelmente para sempre, que a vida me foi roubando de mim, aos poucos. Mas esta frase lembra-me essa ideia, nada é definitivo, nem o que é bom e foi procurado, nem as penas que nos vão encontrando pelo caminho... nada é para sempre. Já diz o ditado (e eu adoro ditados, pois) "não há bem que sempre dure, nem mal que nunca acabe". É isto que temos de nos lembrar, não desesperar mesmo quando o desespero se nos entranha no sangue que corre o corpo todo. Há que fechar os olhos respirar fundo e nesse silêncio encontrar essa certeza, tudo faz parte, tudo é parte do tempo, da vida. Há um amanhã diferente, algures. Certo é que o futuro me deixa muito apreensiva, os próximos anos, e este 2024 que segue já a seguir, pode ser um ano de grandes mudanças, de desafios mais que incertos. Em tudo, e com reflexos na economia mundial, que chega até aqueles que acham que com o resto não têm nada a ver... Veremos, mas nada do que se avizinha será fácil, nem numa perspectiva macro, nem na minha micro perspectiva caseira, da minha vidinha dos dias. Da mãe, da filha, do irmão, do trabalho e do tempo para o resto arrancado sempre a alguma coisa. Há que agarrar os pequenos momentos plenos, há que sorrir nos interstícios dos dias, das coisas, do "tem que ser". Olhar para a minha filha, quase quase grande, que grande nunca será, será sempre uma pequenitates para mim, orgulhar-me dela em muitas coisas, desesperar-me com outras, mas sentir nela um coração no sítio certo, os princípios num lugar seguro, dá-me um sorriso de alma inteira. Olhar as minhas duas patudas, já sem o meu grisalho de quatro patas que há dias se despediu de mim de manhã quando me preparava para sair para trabalhar- mais uma perda que fica neste ano que hoje acaba, o meu grisalho teimoso e resiliente. Olhar para elas e ver a alegria, ver a brincadeira e o amor incondicional que nos têm, a vontade imensa de atenção e carinho, e os gestos ternos que se percebem, os olhares que nos querem falar sem ter palavras.  Tantas, tantas vezes como nós, demais. Tudo isso tem uma beleza que toca se nos deixarmos tocar. Se nos deixarmos tocar, como em tudo. E nestas coisas deixo, e gosto, remetem-me para a minha essência, despertam-na, e fazem alguns instantes plenos, momentos meus.

Revejo alguns posts de ultimo ano que já escrevi, aqui e noutras paragens, e tenho saudades. Saudades da esperança, da vontade, do sentimento de começar de novo de alguma forma. Duma folha em branco. Concluo que já não tenho folhas em branco. Talvez seja uma coisa boa, normalmente servem de rascunho para algo. Talvez agora comece a ser altura do "algo".

Bom ano! 

Que o próximo ano vos traga tudo o que precisam para serem felizes!!


segunda-feira, 25 de dezembro de 2023

 Foi só quando abri a garrafa de vinho. Durante a tarde, a música ligada, os cães por ali e o meu irmão a aparecer volta e meia, e até a ajudar com as rabanadas com técnicas de engenheiro, fizeram a tarde passar bem, mesmo que muito atarefada. O cheiro a canela talvez tenha ajudado. Depois foi o doce da avó, depois já não fiz o bolo de cenoura, substituto do bolo inglês, que era feito para o meu pai, mais ninguém comia… este ano não se fez. Mas passei a tarde comigo, com os cães ,com música, com o meu irmão por bocadinhos. Ao telefone várias vezes, com gente minha, que me faz sorrir, com gente que me liga a perguntar, "viste o céu?... como está?".. não, e lá fui à janela da sala ver aquela maravilha de cores, entre uma rabanada e outra. Ninguém quer crer que esteja na cozinha a tarde toda, entre tachos e colheres de pau. Não é coisa minha, todos os meus o sabem, mas todos sabem porque o faço. Os doces de Natal sempre foi a minha mãe a fazê-los, nunca as empregadas, nunca mais ninguém, senão nós. Bem ou mal, nós. A minha mãe cedo desistiu e recolheu-se, tudo a baralha, tudo lhe faz confusão, tudo é um problema que se chora. Passei o dia de sapatilhas e leggings quentes, não me lembro de alguma vez passar um dia 24 assim, e sem sair de casa, nada. Levantei-me tarde e com uma lista de coisas para fazer... ajuda a não pensar muito, e isso é bom. Às vezes é muito bom. Depois dos doces feitos, a mesa, a loiça do armário da sala, a toalha de Natal. Depois a lenha. Não importa se a casa está quente ou fria, é Natal tem de haver lareira. Mas para isso tenho de ir buscar lenha, e fui, e acendi a lareira. O espectáculo do fogo, a dança das sombras, a intimidade daquele calor. Traz-me muitas recordações... dou por  mim a pensar que talvez por isso agora a acenda pouco… depois arranjar-me, vestir-me. Parecer gente normal, e não um piloto de fogão com banda sonora da boa. Escolher uma garrafa. O mesmo que bebi o ano passado, nenhum vinho muito especial, normal, mas bom. Abrir a garrafa. Abrir a garrafa para mim... só para mim este ano, mas fiz questão de a abrir, para partilhar com quem não está, mas está neste abrir de garrafa, na lareira que tem de ser, no lugar vazio ao meu lado que continua ao meu lado, que estará sempre vazio mesmo que não estivesse. E a abrir a garrafa desatam-se as lágrimas que não esperava. Não se anunciaram, vieram só de mansinho e de rompante, sem se poderem trancar antes de soltas. A garganta a tentar dar um nó que não desate. E pôr o vinho à lareira para aquecer um bocadinho. E aceitar. Aceitar que é assim, que o meu pai já não está, que a minha mãe não sabe de si, nem de ninguém, que está, mas há muito que deixou de estar. Abraça-me a chorar quando lhe digo que sou a sua filha, que sou eu. Abraça-me, diz que não me vê há tanto tempo... e os meus irmãos onde estão? E o Papá? Demora muito a chegar? E o vinho aquece um pouco e depois sirvo-o num copo que acabo sozinha, depois de tudo, à lareira, numa paz que já só consigo ter sozinha. Sozinha com todos os que já perdi, duma forma, ou doutra. E aceitamos. E bebemos o último gole e vamos dormir. Fechamos a luz de fora, e tentamos apagar a de dentro. Amanhã, ou seja hoje, há mais coisas para fazer. Há que meter lenha na fogueira dos dias, quer esteja calor ou frio. 

domingo, 17 de dezembro de 2023

[desconheço a autoria]

 46. É um numero, sempre disse que são apenas números, e são. Vão somando, ou subtraindo conforme queiramos perspectivar. Certo é que o que vivemos já ninguém nos tira, para o bem e para o mal. Há males que serão sempre males e bens que serão sempre bens. Com sorte e alguma inteligência tornamos os males em aprendizagens, em crescimento, em conhecimento da dor, até. Em conhecimento das nossas fronteiras e limites, o que nos leva a impô-los e onde afinal estão - às vezes estão muito para além de onde achávamos que estavam, outras precipitam-se muito antes de o desconfiar, e na verdade nunca sabemos até os testarmos.  De alguma forma a vida, e tantas vezes a dor, vai-nos preparando para o que vier e nalguns casos até o evita. Infelizmente, às vezes, os males evitam futuras felicidades, fazem-nos descrentes, cépticos, demasiado realistas na boca de alguns, e pessimistas na boca de muitos. Seja o que seja somos a soma de tudo isso, do que nos aconteceu e de como vivemos o que nos aconteceu. Como o sentimos, como o sofremos, com que dignidade soubemos responder e aceitar, e como fomos felizes na felicidade que às vezes encontrámos, ou espreitámos, vá. Somos as gargalhadas no meio disso tudo, o saber rir do que nos magoa, das figuras que fazemos, do que somos em caricatura que sabemos esboçar nós mesmos. Rir, rir com quem gostamos será sempre uma das melhores coisas da vida. Eu do alto dos meus 46 aninhos, feitos agora, é o que sinto, o resto teremos sempre: responsabilidades, obrigações, culpas, há até quem tenha arrependimentos (eu curiosamente não sofro desse mal), mas enquanto tivermos com quem rir, quem nos abrace, quem se desvie um tico do seu caminho para nos entregar um beijo a quatro braços, então vale a pena continuar a aprender com a vida a valorizar, cada vez mais, quem o faz. Quem se lembra de nós, hoje e sempre que os dias da vidinha nos permitem parar um bocadinho para nos lembrarmos de viver, de estar, de ser simplesmente. Se fazemos parte desses momentos para alguém e se temos companhia para os nossos, caramba ainda há coisas que fazem sentido. Tanto como estarmos bem sozinhos, de olhos fechados com o sol a bater-nos na cara, como eu estive até há minutos atrás, sentada no chão em frente à janela duma divisão que já foi escritório, onde pensei e cheguei a dizer que poderia ser um quarto, e onde hoje tenho estendido o tapete de ioga (sem uso há duas semanas mas que vou recomeçar assim as dores que me chatearam estes dias me deixem), um caderno rabiscado, blocos e uma manta. O sítio onde a minha pintarolas de quatro patas se aninha ao meu lado enquanto trabalho sorrisos que afinal nem sempre são solitários. Não sei quantos virão mais nem o que se seguirá, já deixei há muito de esperar o que quer que seja. Agora só peço paz, e peço como quem sabe que não pede pouco. Mas se é para pedir... só quem for parvo é que pede pouco, e eu ando a tentar aprender a não ser parva, está visto. 

Fui procurar uma imagem que coubesse aqui e neste dia, bati os olhos nestas linhas, e sim faz-me todo o sentido, mesmo que possa parecer pouco clara a relação entre o texto e o poema (guardei a imagem mas não tenho a autoria do poema, se alguém souber por favor avise-me, não gosto de não dar os devidos créditos). O texto sussurra intimidade, a que me forra momentos, e uma urgência de vida, de começos, de beleza, que se poderia assemelhar à urgência do desabrochar dum botão de rosa, que em nada parece ter pressa para a perfeição. Faz-me sentido, e isso basta.

terça-feira, 7 de novembro de 2023

[foto @peterwyss]

 Bem sei que dizem que é novembro. Mas a mim já me sabe a dezembro. Não sei porquê, talvez os enfeites precoces de natal que já não suporto e que dantes gostava tanto, ou o frio ter entrado assim de rompante, sem se fazer anunciar. Sem ficar à porta uns tempos enquanto nos habituamos ao empalidecer do sol como dum doce que queremos poupar, mas acaba. Gosto do inverno, mas a minha estação é o outono, é aí que me sinto mais em casa, e que mais me apetece ficar em casa, comigo e  gozar as primeiras chuvas como beijos lentos que se saboreiam devagar e repetidamente. As cores para ir vendo pela janela ou para estalar debaixo dos pés, aqueles tons que aquecem o espírito e puxam sorrisos, enquanto o nariz se começa habituar a gelar devagarinho. A lareira passa a ser um sonho que podemos viver e o chá o melhor companheiro para um bom filme ou livro. É a estação da melancolia, e alguns dizem-no como se fosse mau. Como se alguma vez pudesse ser má a doçura da meia luz que nunca fere, ou a ternura das cores quentes. O cheiro da primeira terra molhada. Eu devo ser feita de outono e a estação está nítidamente em extinção. Não sei que pense disso. Não sei.

sábado, 28 de outubro de 2023

 

[trabalho @virgola_]

As costuras já não esgaçam assim, já nada transborda, a força das coisas antigas começa a ser, sinto-a  conscientemente antiga, quase suave, quase. Dou por mim dentro do carro, a acabar um telefonema, e a lembrar-me que à porta desta padaria ou pastelaria ou o que for, anos atrás estava eu naquela mesa, que parece estar na montra, prefere-se aquela porque lá dentro tem a luz toda e vista para fora. De fora, parece que se está na mesa da montra, mas de dentro não há montra, há rua. São perspectivas, é bom que haja muitas e diferentes. Eu estava lá, numa tarde de sábado ou domingo, não sei precisar, e ainda bem, quando poisam as duas tostas que encomendámos, mas  chegam quando já só eu estava sentada naquela mesa. E olhava para fora, para a cena que se passava lá fora enquanto uma das tostas arrefecia, ali deixada e ignorada. Pedida, mas largada. Comi a minha quente, matou a fome. A outra, já fria e intocada, deixada na mesa matou muitas outras coisas. A cena lá fora acabou, sairam vários carros. As vozes deixaram de se ouvir. Eu tomei o café já com o espaço la fora apenas a ser outono e luz e nuvens. Era outono, acho. Para mim era outono. Com esta luz que parece meio adormecida, mas que acorda coisas em nós para adormecer outras que às vezes gritam. Paguei o que se consumiu e o que ficou por consumir. Peguei no carro para voltar a uma casa que nunca encontrei. Chamaram-me casa algumas vezes, nunca chamei casa a ninguém, que me lembre. Casa é o sítio onde podemos sempre regressar e despirmos o mundo à porta, onde nos sentimos seguros e livres ao mesmo tempo. Nunca senti ter a segurança dessa morada em ninguém. Mas cheguei onde moro, depois de muitas voltas à cidade e telefonemas e desculpas. Hoje estou aqui à porta e recordo. Mas já não me transborda a dor e a raiva, a incompreensão de tudo, as costuras da ferida já não rebentam, nem sequer esgaçam. As costuras já não esgaçam assim. 

Vou comprar pão e vou para casa. Agora vou para casa. Fechar a porta por dentro é tão bom. 

sexta-feira, 29 de setembro de 2023


 Era mesmo isto. 

Perfeito.

Quero muito, mas não sei se posso, ou encontro aquele sítio que me leva os olhos e a alma para outras paragens, ou se a vida se mete no meio da vida que quero, que me apetece, que preciso. Falta-me a distância para ter o tempo perto e a solidão para ter vida dentro. Parece que já não sinto nada. Só sono. Sono tenho.

terça-feira, 26 de setembro de 2023

Às vezes é tão difícil sentir-me em casa, aninhar-me num ninho que sinta meu. Um sítio onde a tristeza é tão possível como a gargalhada. Onde o beijo era tão natural como o silêncio. Talvez seja o Outono a descer-me pelos ombros carregados, ou saber que a Prmavera não abriu Verão algum. Talvez seja eu que não saiba sair de mim senão para me entregar a sítios sem destino, e a devolução ao remetente perde-se sempre no caminho.

sexta-feira, 8 de setembro de 2023

 

… e depois o arco-íris a saltar do azul do mar. E o livro fecha-se para abrir as cores, as palavras, dar rédea solta aos pensamentos que sonham e nos embalam, às vezes, os dias. Cada vez mais sonhar me lembra o lavrar o mar… como a espuma  que o caminho acalma e o tempo vai apagando. 

sexta-feira, 1 de setembro de 2023

quinta-feira, 10 de agosto de 2023

 Na cozinha com duas cadeiras a fazer de cama, uma almofada na parede para encostar a cabeça, conto respirações de luz apagada, abro os olhos quando por um bocado não oiço nada… o meu coração pára, talvez também ele para tentar escutar melhor. Depois volta a respiração curta e quase em esforço, ainda que menos do que aquele que ouvi e me fez fazer de duas cadeiras uma cama. Há duas horas contei 65 respirações por minuto, os batimentos cardíacos desisti porque eram de tal forma confusos acelerados e fortes que desisti, antes que com o pânico quem tivesse um ataque fosse eu. Agora conto entre 35 e 40 depende. Parece-me que a este ponto depende do sonho que o grisalho cá de casa está a ter. Eu por mim estou num pesadelo há horas… desde que o fui buscar ao hospital dos peludos. Que estava tudo bem, fora de perigo, dois dias depois de entrar por ali a dentro com ele por um fio pela minha estupidez. Não vi na véspera que temperaturas iam estar; os dias de muito calor tinha ouvido nas notícias eram no fim‑de‑semana, depois começavam a baixar. Deixei muita água e deixei-o a sombra depois de lhe dar de comer. Seguiu-se um dia de trabalho, fora daqui como sempre nos dias que correm, a uma hora daqui, quase. E a caminho, atrasada, para não variar, fico a saber que esperam temperaturas de 40 graus… deu-me um aperto, mas achei que estando à sombra, num sítio coberto e com bastante água não haveria problema grave. Estou sozinha, filha de férias longe, irmão de férias mais longe ainda, a senhora que vai fazer a limpeza de férias. E eu a quase uma hora. Liguei para quem estava no prédio para assegurar que ainda havia água nas bacias, e que o moço estava à sombra. Sim senhor a tudo, fiquei mais descansada, confesso. Quando chego a casa a correr escadas acima abro a porta para o pátio de trás e vejo a quase morte a ofegar, os olhos vidrados quase ausentes, não se mexia, reagiu à minha voz pareceu-me. Corri a buscar a bacia com água deitei-lhe um pouco no focinho, fui buscar uma taca pequena e enfiei-lhe água pela goela abaixo. Não se mexia, e arfava como quem foge à frente da morte com ela quase nos calcanhares. Ligo para as urgências, o que faço? Trazê-lo? Ele n se mexe… mas tem de ser, não há outra maneira respondem-me. Ok, nem que o carregue as costas. E foi, não as costas mas  em peso, até ao abençoado elevador que me levaria à garagem. É preciso a chave para o elevador ir até à garagem. Está no chaveiro, com a chave de casa, que na confusão... ficou em casa, do outro lado da porta fechada… ia morrendo eu. Lembrei-me que desde que estou sozinha tenho uma suplente guardada, porque sei que a minha cabeça é tonta e que um dia qualquer isto podia acontecer. Claro que nunca imaginei que estivesse numa tal emergência. Corro, literalmente, subo desço, volto. Finalmente o elevador tem como descer até à garagem. Abro o portão, o carro ficou lá fora ao sol. Domingo esqueci-me de o por na garagem. Se houvesse um Euromilhões ao contrário eu ganhava se jogasse. Certinho direitinho, não há outra hipótese. Pego no bicho em peso, ponho-o aos pés do lugar do morto e rosno com este pensamento. Fecho a porta dou a volta ao carro a correr, tudo sempre a correr, desvairada. Ligo o carro, o ar condicionado no máximo e só para os pés. Não sei como não atropelei ninguém, ou não me desgracei em modo automotor, acho que cheguei ao veterinário em minuto e meio, e entro por la com o cão quase debaixo do braço, só que ele não é do tamanho de um porta chaves… vai directo para debaixo de água. Termómetro, acima de 40 graus. Olha para mim como quem grita, lá dum sítio fundo e de voz sumida. Passam 5 minutos, talvez menos, talvez mais, sei lá. Termómetro. Desceu mais de meio grau. Mais água, álcool porque (aprendi) quando evapora com a água dissipa o calor do corpo. Mais chuveirada no pelo, até que chega à temperatura normal. Eu não falo, não digo nada, olho, oiço, tento pensar se será possível que aquele moço de 14 anos e uns trocos ultrapasse aquilo. Começa a beber água do chão do sítio onde estão a molha-lo, começa a estar presente na cena, a parecer até o quanto lhe está a saber bem a água, começa a sentir-se melhor. Começa a sentir, parece. Já respira devagar. Mais devagar que agora, parece-me, o meu coração dá-se conta que bate, já me sinto respirar. Talvez. Só talvez. Mas reagiu e pode ser que… talvez. Mandam-me para casa e vai lá ficar para o dia seguinte, a soro e análises. As próximas 24 horas são críticas. No dia seguinte o medo das notícias, ligo, nada, depois ligam-me. As análises podiam estar pior face ao episódio de calor e idade. Tem de se repetir ao fim da manhã. E depois de feitas acusaram teimosia extrema, evoluíam positivamente. Tinha-o apanhado e trazido a tempo. Mas ainda não saiu da zona de perigo. E eu não saí de certeza, digo que é melhor ficar mais um dia. Tenho medo de o levar  para casa, pesquisei no Mr Google e os três, quatro dias podem revelar consequências que as primeiras 24 horas podem ocultar. Fica mais um dia internado, mas vou ve-lo ao fim do dia. Está vivaço, levanta-se com alguma genica, bebe água e come com vontade. O meu coração respira de alívio, a culpa larga o lastro de uns tantos quilos… "foi uma sorte, eu estava céptico-  dizia o médico -, e a olvido branca, nem falava, mas chegou cá em tempo recorde e devemos ter feito tudo bem, porque se amanhã continuar assim ,está fora de perigo" não há indicadores que levem a pensar diferente. À tarde liga-me. Ele está bem, e tem alta. Hoje. Há bocado ao fim do dia, mas quer fazer um exame ao coração. Continua com respiração acelerada e ofegante, já não havendo razões para isso... e tem de haver uma razão. Fez o exame e descobriu, tem o coração grande demais - brinco e digo, isso eu já sabia, mas não sei se me entenderam - e continua, ocupa quase a caixa torácica toda, não deixa espaço para os pulmões trabalharem normalmente, e está já a pressionar a traqueia... pois, quem tem o coração grande demais, respira mal muitas vezes, como quem tem um peso no peito, sempre a pressionar. Também já sabia disso, penso para mim, mas não digo, calo. Não me entendem, mais vale o silêncio. E fui buscá-lo e achei que não estava espevitado como ontem. Já em casa acho-o cansado, prostrado, derrotado e quase em esforço para respirar. Sinto-o quente, ponho uma toalha molhada no corpo passo no focinho e orelhas. Não melhora, passado um tempo acalma um pouco. Não estou descansada. Vou buscar as mantas para ficar com o rabo menos quadrado nas cadeiras a fazer de cama. Fecho as luzes. Ponho-me a contar respirações e as horas de sono que não vou ter, mas não consigo sair daqui. Não que faça alguma coisa, não faço, porque não sei o que fazer, senão esperar pela manhã para ligar outra vez. Dizer que alguma coisa não está bem. Ajudem-me. Ajudem-no. Que eu contar respirações por minuto não ajuda a coisa nenhuma, mas não sei que mais fazer para que o coração bata com jeito e não em modo descompensado e sem regras. Tenho sono e uma reunião às 10. E um irmão que tem direito a ainda ter cão quando regressar, a não se sentir culpado por ter ido três semanas de férias quando precisava de três meses, porque quem deixou cá a tratar do cão, do limoeiro, do jardim, do correio, do resto da canzoada e da papelada não conseguiu fazer as coisas bem, com jeito.  É certo que o cão tem o coração grande, agora atestado com radiografia cheia de razões, mas podia ter evitado o calor, deixava-o dentro da cozinha, ainda que não evitasse lavar a cozinha todos os fins de dia. E agora conto respirações e rezo para que nos próximos dias tenha razões para ter de lavar a cozinha todos os dias quando chegar ao fim de um dia de trabalho. 43 respirações neste minuto e três sustos. 

(E não vou reler não me apetece, deve estar cheio de gralhas, paciência, também eu)

sábado, 5 de agosto de 2023

 

Um calor de ananases… e eu a visitar hábitos antigos… Esplanada e café, um livro para começar, um café a que falta uma pedra de gelo. E aquele pacote de açúcar irresistível. Intacto, agora e depois, mas irresistível ao registo. Ao menos ao açúcar o café faz falta. A mim também. 



 As meninas e as sombras. Ou as meninas das sombras. Ou as meninas da luz, daquele dourado de fim de dia que alimenta a alma, que descansa o dia que ainda corre nas veias dos pensamentos, sempre a correr, sempre contra o tempo, sempre a tentar comer os atrasos que vão embrulhando as horas do dia, e a  evitar outros que acontecem, porque têm de acontecer por muito que se corra e combata. Mas depois, esta luz, esta cor a pintar as paredes da minha sala. Sento-me no braço do sofá, como tantas vezes, a olhar para fora, a ver as cores mágicas do sol a desaparecer devagar atrás do horizonte do nosso olhar. E é nessa dança lenta e lânguida que nasce esta magia das cores de fogo lento, que aquece, que conforta, que se instala na alma muito depois de olhar já não as encontrar. As meninas ficam doidas com as sombras na parede, com as formas, com os movimentos. Olham a parede como nós olhamos quadros em grandes museus para lhes apreciar a arte e a beleza, e ficam ali, assim a ver as coisas que vêem, sempre à espera do próximo momento, do próximo movimento, do enigma desse jogo de sombras, que apenas escondem a luz que está lá sempre, por trás das sombras. As sombras são também luz, sem luz não haveria sombra. Escuridão não é sombra, escuridão é ausência de luz, se alguém se habitua à escuridão deixa de abraçar a luz, passa a fechar os olhos de estranheza se algum fio de sol lhe invade os dias, um dia deixa de a reconhecer suponho. A escuridão não engana, não tem formas para adivinhar, não há movimentos para observar, não há ilusões de óptica que nos fazem pensar que algo nos toca, nos afaga ou nos morde, quando a realidade está longe disso. A escuridão come até a vontade de luz, torna a luz incómoda, inconveniente. Como em tanta coisa, há vezes em que fechamos os olhos porque não queremos ver mais, ao contrário daquela frase de "depois de abrir os olhos, depois de se ver, não se consegue deixar de ver". Consegue, escolhemos a escuridão. Escolhemos não ser abalados pela magia, não sentir calor. Sombras não é escuridão. Na escuridão não há cores douradas que chamam a noite pela mão, numa dança lenta, lânguida e cheia de prazer,  em que os sentidos se inebriam do momento e ao mesmo tempo duma antecipação de algo que nos acelera o sangue que não pensa. E eu, aqui, vejo luz e sombras na parede, viro costas à janela por momentos e volto os olhos para a parede, para o improvável.  Vejo este quadro que leva a outros, porque uma sombra leva a outra, como uma luz traz outra luz. Por trás de cada sombra há uma luz que foi calor, que foi vida, que foi magia, é quando essa luz fica em nós que devolvemos sombras, sombras que só vemos porque ao redor há luz sobre todas as coisas.

domingo, 9 de julho de 2023

 Há uma brisa quente que nos sopra os cabelos e a pele, que faz as árvores assobiarem músicas lá delas. A pintarolas de quatro patas vê uma mosca, ou algo voador, que eu não vejo, nem oiço. Uma andorinha cruza o céu azul, imaculado, não há nuvens a esborratar o céu. Aparecem mais três, em voos redondos, sem poisar ou abrandar, sempre à volta da árvore em frente à minha varanda. Sempre que aqui venho ocupa-me os olhos, mas raramente a olho. Provavelmente ela observa-me a cada vez, sabe-me melhor que eu a ela, já terá visto tanta coisa... e então reparo, há ramos que ainda se enfeitam de flores duma cor que não sei se tem nome, mas tem lugar. Ali. Já o pinheiro do vizinho sofreu uma qualquer frustração e baixou-lhe a crista, curvou-se a alguma evidência. Acontece a todos. Sento-me aqui e vejo como é difícil ver coisas novas nas coisas que envelhecem connosco os dias. 

sábado, 3 de junho de 2023


What are your top 7 rules of life?


1. Everything you say should be true but not everything true should be said.

2. Just because a decision hurts, doesn’t mean it’s wrong.

3. The path of inner peace begins with 3 words: not my problem.

4. Normality is a paved road: It’s comfortable to walk but no flowers grow.

5. Never carry old feelings into new experiences.

6. The more you like yourself, the less you’ll need others to.

7. The cave you fear to enter, holds the treasure you seek.


Apanhei isto nos rascunhos, não sei há quanto tempo terei guardado estas 7 linhas em jeito de regras de vida - e eu que gosto tanto de listas e de regras -, mas percebo por que as guardei e percebo que há aqui ensinamentos recorrentes, coisas comprovadas muitas vezes já na minha vida, directa ou indirectamente. E outras que tenho mesmo de interiorizar, a bem da minha sanidade mental.

A primeira há não muito tempo foi tema de diversas conversas. Nem sempre e fácil as pessoas perceberem a diferença entre: dizer tudo, e dizer sempre verdade; para dizer tudo, ou falar de tudo, terem de mentir (mesmo que para supostamente proteger); e não dizer sempre tudo, mas tudo o que se diz ser verdade, sendo que as omissões também não provocam mágoa. São três realidades diferentes, posturas diferentes, valorizações da verdade distintas. É uma regra simples, mas nem sempre é facil de entender, e às vezes mais difícil ainda de pôr em prática. Desde que me lembro que (para mim) a verdade é algo imprescindível, sobrevalorizado provavelmente até, mas é o que me assegura que as decisões que tomo são minhas, bem ou mal mas minhas, com base na realidade das coisas. Sem a informação verdadeira e disponível, as decisões são condicionadas, a liberdadae de opção é-me retirada, limitada - é-me negada, e essa sensação eu detesto e custa-me esquecer, na verdade. Sinto-me manipulada. Prefiro saber a verdade toda e ter de a enfrentar, de lidar com ela, seja ela o que for, e decidir de acordo, do que não saber tudo ou mentiras. Tive durante muito tempo de ouvir realidades que me custavam horrores, mas preferi sempre sabe-las, e ter de lidar com elas e com a dor que me causaram, do que mentirem-me ou omitirem (ainda mais do que fizeram). São opções, e acarretam muitas consequências. Se queremos a verdade depois não podemos maltratar o mensageiro, não podemos dizer que queremos saber a verdade mas depois tornar impossível que nos contem a verdade porque não sabemos, ou queremos lidar com ela. É preciso alguma maturidade e muito estômago, e só é recomendável para quem valoriza muito a sua liberdade de escolha, de opção, de decisão.

A segunda é bastante óbvia, mas é uma verdade que nem todos querem ver. É muito melhor a comodidade do que se sabe e conhece do que decisões que mudam as coisas (às vezes é só assumirem que mudaram, porque há muito que mudaram mas insiste-se em assobiar para o lado). Assumir mudanças às vezes dói, umas vezes a nós, outras a quem nos rodeia. É preciso perceber que só porque dói não quer dizer que esteja errado, há coisas que têm de doer, não há forma de contornar, e se não o assumirmos vão doer doutra forma, às vezes mais, outras vezes mais tempo, e outras ainda mais e mais tempo... mais uma vez protegermos a mentira, fugirmos da realidade, porque é duro, porque nos protege de mágoas e dores não é a melhor decisão. Muitas vezes é mesmo a pior...

A terceira custa-me muito aceitar, confesso. Percebo que seja uma realidade, mas talvez tenhamos de distinguir o que é problema nosso, e o que é problema nosso por vias travessas, por ser problema de quem gostamos, de quem queremos bem. De ser um problema nosso - ou sentirmo-lo assim - não estarem bem. E também distinguir quando podemos fazer alguma coisa, de quando não podemos fazer coisa alguma. Dar murros em pontas de facas não dá saúde a ninguém, sendo em relação a problemas nossos, ou do vizinho. Acho que a paz interior começa onde acabou tudo o que podíamos fazer. Assim faz-me mais sentido. E estou em paz em relação a maior parte das coisas na minha vida, em tudo (ou quase) sei que fui até ao limite das minhas forças, tentei tudo, dei tudo, e tenho consciência que foi esse o preço da paz interior que sinto em relação a essas coisas. Daí também, provavelmente, ter tão poucos arrependimentos na vida.

A normalidade, pois, um conceito estranho. Estranho nos dias de hoje, onde a normalidade não parece muito normal. Porque normal é de facto um conceito estatístico, e não um juízo de valor. Certo é que fazer parte da manada não destaca ninguém, e as flores do caminho, são isso: bons feitos, acontecimentos belos, marcos que ficam pelo caminho carimbados de sorrisos. E Às vezes o não ser da manada é apenas olhar de forma diferente para as coisas, não mais do que isto. Mas tudo é estranho quando o normal hoje é todos serem "especiais". É só mais uma manada. Difícil hoje em dia é pensar pela própria cabeça - e já agora ter uma -, é saber distinguir o politicamente correcto tonto do respeito que o outro nos merece, difícil é chamar as coisas pelo nome e assumir o que se pensa - e já agora pensar e não apenas repetir o que se ouve ou lê nos títulos apelativos. Às vezes serão chamados de malucos, e não "especiais" (que chatice...), outras serão chamados e tratados como coisas piores, mas mais uma vez - e à semelhança do que foi dito umas linhas acima - não quer dizer que estejam errados... o difícil é assumir o que realmente se pensa... ahh e pensar, isso também me parece cada vez mais difícil.

Não trazer mágoas antigas, a bagagem de que a vida nos foi carregando, para os dias novos, para o futuro que se vai fazendo a cada presente. Percebo, mas não me parece que haja forma de efectivamente o fazer. As mágoas antigas, o que nos doeu, o que passámos, ainda que seja já passado deixou marcas à passagem. E ainda bem, é assim que aprendemos e podemos evitar os mesmos erros. Sim, as situações não têm de ser as mesmas, as pessoas são todas diferentes, é certo, mas nós somos os mesmos... e há coisas que já sabemos que não queremos. Mas percebo que não podemos assumir que sabemos ou que iremos reconhecer todas as situações, por isso percebo a ideia, não levar ideias preconcebidas para situações novas, entendo. Acho eu.

Esta sim é uma grande verdade para mim, e que eu gostava tanto de ter em mim. E acho que vou tendo cada vez mais com o tempo, até demais porque cada vez gosto mais e quero mais estar sozinha. Sozinha é como me sinto melhor, não desiludo ninguém e ninguém me desilude, não tenho de tratar de ninguém a não ser de mim, e eu sou low maintenance. Cada vez mais gosto da minha companhia. Quanto mais nos soubermos valorizar, e avaliar o que de bom e de mau temos, menos precisamos de validações eternas e menos nos afectam os defeitos e falhas que nos apontam. Quanto mais certos tivermos do nosso valor menos precisamos que os outros nos valorizem.

Finalmente, os medos. Sim o que haverá de extraordinariamente raro na vida estará do outro lado dum medo qualquer, e é por isso que é raro senão seria o dia a dia. Quando o que queremos é algo difícil para nós então isso estará atrás de um muro qualquer que teremos de transpor, que temos de medo de tentar trepar, que temos medo de não conseguir, que temos medo ponto. Se calhar o que temos de perceber é que o pior que pode acontecer é termos de assumir e confrontarmo-nos com o facto de que não conseguimos. E não é pouco, mas não é tudo. É isso que ando a tentar aprender.

segunda-feira, 29 de maio de 2023

[foto de Jacon Sutton]

 "O mundo é só o chão que pisamos, o resto somos nós" - foi uma das frases que escrevi, e a última que disse quando me pediram as impressões daquela experiência, que pediram para repetir para poderem apontar e ficar, depois de andar pela sala de olhos fechados o mais lentamente que conseguíssemos. E é giro, tudo é diferente quando fechamos os olhos. Temos de reaprender a andar, e aceitar o baloiçar do corpo hesitante como um navegar do tempo desconhecido, do futuro, do passo seguinte. Estou num ponto estranho da minha vida, a dias de voltar a trabalhar, de extinguir o meu posto de dondoca, sem qualquer vontade e com a angústia de pensar que não o deveria fazer já, que preciso de mais tempo, que preciso ainda de me ajustar a muita coisa, de reaprender a andar. Pensei que teria pelo menos dois meses antes de começar a procurar, mas ao invés, vieram à minha procura, muito tempo antes de eu esperar... e por isso esta experiência em que mergulhei nos primeiros dias de liberdade ficam agora meio desamparados, como eu. Há alturas na vida em que começamos a procurar coisas diferentes, ou que julgamos diferentes, e descobrimos que afinal têm muito de nós. O yoga entrou devagarinho nas minhas rotinas, mas tinha o condão de me voltar para dentro, ao mesmo tempo que me calava os diálogos interiores, e isso dava-me paz, descanso de mim. Fiz do yoga uma actividade exigente em que tudo requer atenção, o alinhamento, a posição, o alongamento que devemos sentir, os musculos que ficamos a conhecer e não sabíamos da existência, e isso tudo não deixa espaço para outras vozes - e percebi que era a altura em que habitava mais, mais do meu corpo. Em que tinha mais consciência de cada recanto meu, e do que perdemos no meio do uso diário de nós mesmos. Então embarquei nesta coisa de saber mais, por curiosidade, por vontade, por responsabilidade também... para saber o que ando a fazer, porque sozinha e em casa, sem conhecimentos suficientes, posso magoar-me sem saber como (e já aconteceu andar com uma dor de costas mais de um mês à conta disso mesmo). E agora, depois do primeiro fim de semana de formação em meditação e pranayama, sinto-me meio perdida, talvez até meio na direcção errada. Mas a vida não se compadece de nós, e não espera por nos desenvencilharmos de nós mesmos, de nos resolvermos, de parar a vida, até que possamos acompanhar o ritmo e os dias... daqui a três dias começo a trabalhar e vou ter de encaixar tudo, e vou ter de ser toda em cada coisa. Ainda não sei como me vou fazer, ou aos dias, ou à cabeça que deve comandar as coisas se ainda mal se aguenta com tanta coisa que aconteceu durante tanto tempo, e só agora pareço perceber isso. Depois penso o que diria meu pai de tudo isto... ou até a minha mãe se fosse possível uma conversa... e não sei. Mas sei que teria tanta curiosidade quanto eu em relação a muita coisa, e isso aquieta-me, mas não me reduz a angústia, o peso, o medo. Esse medo de caminhar devagar, descalça e de olhos fechados, que obriga a reaprender equilíbrio, a contar passos para me orientar, a levar as mãos esticadas à frente para saber ao que vou e amortecer os choques... mas sempre esta sensação, de que o mundo, o lá fora é só o chão que pisas, o resto é tudo cá dentro, e não tem de ser escuro. Mas baloiça como os barcos a ajeitarem-se às ondas do mar. Como uma dança de que não conhecemos a música, onde só o corpo e alma são instrumento para tocá-la e dançá-la. 

Nessa complexidade simples de não haver como tocá-la sem dançar, nem dançá-la sem a tocar. 

quinta-feira, 25 de maio de 2023


 Olhar para trás,

 e sentir que é já para trás que se olha.

(e é bom, no meio de tudo, sentir que ficou lá atrás, é bom)

 Se eu soubesse explicar não estava aqui, assim, com as palavras a entermelarem-me os pensamentos, com as teclas debaixo dos dedos sem saberem como dizer o que dizem, com a cabeça a afogar-se, a afogar-me. Neste ponto onde nada faz sentido, e onde se sente o sentido de tudo, como uma clareza que não se toca, mas se desembrulha de forma estranhamente límpida algures no nosso ser. Como um destino que se adivinha no emaranhado de possibilidades de futuro... porque vão todas brutalmente acabar ali, naquele nó. Onde tudo se repete, onde tudo se repetirá, onde eu serei outra que já sou sem saber. Direi um dia o que oiço? Serei um dia o que vejo? E sinto a resposta como se a soubesse, mesmo que não a saiba. E a cabeça a afogar-se na impossibilidade abstracta de outras possibilidades, que não se sentem possíveis, e os soluços já não travam a velocidade de tudo que me passa pela cabeça, tudo que quero evitar sem poder. E sempre este ponto, isto, de não chegar, de não ser suficiente, de não saber ser mais ou somente ser capaz de ser eu, sem ser. Sendo outra que não pense assim, seja assim, sinta assim, faça assim, que não se afogue assim, neste ponto. Alguém que não se tenha deixado quebrar, magoar, cair e diluir. Alguém que ao fim de um dia bom  não o perca afogado no meio de frases que ainda não dissemos, mas que ouvimos de outras bocas que um dia será a nossa. E isso mata-nos enquanto dá vontade de morrer antes disso.  E afogamo-nos no meio de tudo isto. E não pedimos ar, só que acabe depressa. 

E escrevemos, na tentativa dum ponto final.

segunda-feira, 22 de maio de 2023

 Dar nome de árvore aos beijos, para que dêem flor e fruto.

(das frases com que se acordou um dia qualquer. Daquelas que não nos largam, que se colam a nós a cada respiração... a cada sorriso também, se a frase for destas :) ... depois escrevinhamo-la algures, se tivermos juízo e pachorra, para nos largar e para mais tarde podermos voltar a ela, para lhe darmos vida quando a conseguirmos casar com uma fotografia. E um dia percebemos que a fotografia está ao alcance do abrir duma janela de todos os dias. )

Que nome dás à tua?

Bom dia!

domingo, 21 de maio de 2023

 


Há realmente alguma coisa reparadora no silêncio da natureza. Um silêncio que não é oco, não é vazio, é cheio de uma vida que nos enche, que nos repara, que nos recupera. Foram três noites e não deu para tudo o que queria, ou como queria. Ficar doente sabe deus com quê não ajudou, mas deu-me sono e dormi, fiz yoga quando me apeteceu com os olhos a alongarem também até ao horizonte. Ouvi musica enquanto cozinhei, li enquanto os olhos não se quiseram fechar. Tudo num ritmo muito próprio, muito meu, muito sem horas. As noites na serra são frias e o céu tirita de estrelas que não conseguimos contar, nem queremos.  O calor da cama conforta e aninha, enquanto os olhos se distraem pelas janelas abertas à paisagem, com as luzes da vila ao fundo, qual presépio fora de época. E a cabeça vagueia não se sabe por onde, mas volta a nós e devolve-nos, porque não há ali mais ninguém, só nós e quem trazemos dentro. Só nós e as recordações. Só nós e os sonhos. Só nós e o que nos faz, e nos fez. E a Pintarolas, claro, que atrevida elegeu um sofá de baloiço para cama mesmo em frente à janela. 
O que custou foi o regresso, e pensar no que se aproxima, no tempo que afinal não vou ter como pensava, que tudo se acelerou, que o tempo encurtou. Que a dondoquice está em perigo de extinção desde o telefonema com uma proposta, que a consciência manda aceitar porque é aliciante, e porque dondoquice não é opção de vida, por muito que me apetecesse (e precisasse) mais tempo de descanso, de reorganização, de ordenar ideias e interiores remexidos demais. Vamos ter menos tempo para fazer o que pensávamos fazer em mais, vamos ter de esticar tempo e dias para fazer tudo o que queríamos, projectos novos, facetas de nós que queremos descobrir se são nossas mesmo. Para explorarmos caminhos em nós que não sabemos ainda onde vão dar. E escrever, obrigar-me a sentar e vencer a preguiça de me desenovelar, de me desenterrar dos escombros dos últimos tempos. E aprender, aprender mais coisas, porque aprender também alimenta. E pensar em voltar. Em voltar a nós, não aqui, mas a qualquer lugar onde consigamos estar presentes, onde a alma tem um corpo perfeitamente seu, que habitamos verdadeiramente, numa plenitude que só certo silêncio compreende, e explica.

quinta-feira, 18 de maio de 2023



 Dias que enchem a alma e nos libertam a cabeça, com terra calcorreada debaixo dos pés e sol alto no olhar. Passeios e caminhos, estradas que acariciam as curvas da terra e fazem a alma dançar ao som das músicas que se vão sucedendo em sorrisos que não sabem cantar. Locais de silêncio e águas que vão correndo calmamente para onde têm de ir, numa frescura descomprometida e livre, que fazemos por beber. Pausas que fazem o tempo ter um sentido que não precisa de razão, como se a vida só se vivesse nesta suspensão do quotidiano, nos intervalos dos dias. 

Eu conseguia habituar-me a esta vida de dondoca sem esforço, a sério… anda-me a saber como a água fresca aos sedentos. Sede de vida também se sente, parece-me.

terça-feira, 9 de maio de 2023

 O meu pai ontem não fez oitenta anos, hoje a minha filha faz dezassete. Bem sei que é lugar comum dizer que não se sabe como crescem tanto e tão rápido, como o tempo passa sem se dar por ele. Mas dá-se por ele exactamente neles, nos filhos. São o nosso melhor espelho, para nos dizer do tempo, e do que temos de bom e de mau, porque o vemos neles melhor que em nós. A minha pequenita tem muito de mim, já tem é pouco de pequenita, e é também por isso que chocamos tanto e achamos normal... porque discutir é normal e os feitios não são para nos calarmos. Depois é teimosa que nem uma mula, e touro, como o meu pai. E eu tenho a mania que tenho sempre razão, já ela acha que sabe tudo. A modos que os dias não costumam ser monótonos cá em casa :))) safa-nos (às vezes) termos as duas sentido de humor e vontade de rir. Depois temos conversas sérias pelo meio, onde argumentamos e pensamos juntas, trazemos novos olhares sobre paisagens antigas, ou novas. Tem sido um caminho muito partilhado e uma viagem muito bem temperada (às vezes demais). E hoje, hoje acordei com a ideia de que nestes dias as mães deviam ter a prerrogativa de escolher a idade que os filhos deveriam ter, só hoje, só neste dia. E hoje a minha filha teria meses, e caberia perfeitamente em modo sapito em cima da barriga do meu pai, ela de braços e  pernas encolhidas, de dedo na boca e toda aninhada na ternura dele. Hoje dava tanto por chegar a casa e vê-los aos dois naqueles preparos. Ela só de fralda em cima da barriga dele, deliciados os dois naquela doçura lá deles. Tantas fotos se tiram, de tudo e mais uma botas, e aquela não tirei, mas guardo-a na memória dos meus melhores sorrisos. Que a doçura nunca te falte, e que o teu avô te continue a dar todos os beijos pequeninos, que eram só dele, através de mim, para que te lembres da ternura dele e donde herdaste a tua.

sábado, 29 de abril de 2023

 Dia 15 deste mês, há mais de uma década, quando tinha a idade que eu tenho hoje, pôs-me a mão no pescoço e roubou-me o que, descobri depois, lhe queria dar. Sempre e todos os dias a partir daí durante muito tempo. Passado duas semanas fez anos. 

Hoje entra numa nova década. 

Ontem fechei parte duma etapa da minha vida, ou sinto isso, uma que me foi particularmente difícil atravessar, mais uma. Mas sinto-me livre, aliviada, e cheia de medo, mas com aquela a sensação de que fechei uma porta a um passado. Que se virou mais uma página. E ontem lembrei-me que hoje viraria uma década. Espero que a próxima década lhe traga o que quer, que seja feliz. Esta é a minha prenda, quero que seja feliz. Nunca o consegui dizer sem me sentir injustiçada, sem sentir que isso seria construído, vivido, em cima de toda a mágoa que me deixou, todo o sofrimento, desconsideração e desrespeito que sempre me dedicou, e até algum desprezo conveniente. Nunca o consegui dizer, e nunca o disse. Hoje quero que seja feliz, só. E que recupere todo o vocabulário que perdeu, se algum dia perdeu alguma coisa de facto.

Beijo

Escrevo-o aqui da mesma forma que sempre lhe dei todo o amor, todo o carinho, toda a ternura, toda a consideração e respeito, tudo o que de melhor encontrei em mim para lhe dar. É uma coisa de dentro para fora, de mim para o outro, é uma coisa que escrevo porque precisa de sair, que entrego porque preciso e porque quero. Tem só a ver comigo e nada com o outro. Com o outro receber ou não, ouvir ou não, ver ou não, perceber ou não. Merecer ou não. Retribuir ou não. É uma coisa minha, dos meus botões, das minhas contas interiores. É uma coisa de mim para mim, que precisa respirar e libertar-se, voar.

 Querido, mudei a casa!!

Adoro esta fotografia. 

Há um grito nela, que oiço.

E um gozo, que sinto.

E uma certa petulância desafiadora, que me fala. 

E um horizonte todo a testemunhar, desfocado mas ainda a deixar perceber as vistas largas.

A nudez debaixo do reflexo da água: uma fragilidade assumida é uma força disfarçada.

Não sei se já tinha mudado esta casa alguma vez, não me lembro, mas suponho que já tinha havido uma foto antes da que substitui agora. Há sempre alguma coisa forte que impõe esse tipo de mudanças, não sei porquê, mas porque este espaço é muito eu, identifico-me com tudo o que aqui aparece de alguma forma, e o mote é o nome daqui do tasco e a foto. A palavra e a imagem, duas coisas que em mim andam muito atracadas uma à outra. Hoje fez-me sentido esta mudança como se não a fazer não fizesse sentido, era algo que se impunha de facto, negá-lo seria deixar de ser fiel ao princípio. O que me lembra aquela máxima, que acho o máximo, que diz que temos sempre de mudar para conseguirmos mantermo-nos fieis a nós mesmos, para continuarmos os mesmos.

 

Fez precisamente ontem uma semana que mandei esta música às minhas pessoas mais chegadas, aquelas que me têm aturado e ouvido no último ano de martírio. Finalmente parecia que sim, que estava livre da situação. Ao fim de tanto tempo a aguentar tanta coisa e farta de tudo, consegui sair a bem e com tudo a que teria direito se não fosse eu a querer sair. Aguentei o inferno, mas fui guardando factos, e coleccionando argumentos que poderiam um dia fundamentar precisamente sair assim - pelo meu pé, mas como se não fosse. Verdade que acenei com algumas dessas coisas, verdade que apesar de dizer que me queriam a trabalhar lá, que eu era uma mais valia, eu se calhar dava muitos problemas e faziam-mo sentir, e não que seria uma mais valia. Dias antes da morte do meu pai, no dia seguinte a ter sido internado, cheguei a casa ao almoço e decidi, é agora, vou sair, chega. Queria chorar tudo duma vez e não conseguia, queria gritar e a voz desaparecia, estava toda eu um nó que não conseguia, ou sabia, desatar. Não consigo lidar com tudo, já não sinto chão de baixo dos pés, tudo parece areias movediças, e a minha sanidade mental começa a fazer-se sentir uma miragem. Lembrava-me insistentemente de me dizerem tantas vezes lúcida, consciente, analítica, e sentia que essa lucidez já não estava ao meu alcance, fugia-me por entre todas as merd@s que os dias, o quotidiano infernal me servia, dia após dia. Decidi isto,  acabou, vou sair.
Dias depois abriu-se um buraco no chão do meu caminho, onde parecia caber toda a minha vida, onde tinha caído toda a minha vida sem quaisquer notícias do seu paradeiro. Como se de repente tudo tivesse desaparecido, tudo tivesse sido sugado por uma escuridão que não se consegue combater, ou alumiar. "Parece que te passou um autocarro por cima", disseram-me na manhã que seguiu a pior noite da minha vida, e eu ri-me, deve ter sido um tractor, um TIR carregadinho, e estás a ser simpático, pensei. 
Duas semanas e pouco depois, arranjei forças e coragem para ter "a conversa". Disse tudo o que queria, não deixei que me levassem a conversa para onde eu não queria ir, deixei claro que não queria criar problemas, mas certa que se os houvesse eu tinha defesas, até trunfos. Deixei claro que a minha postura tinha sido sempre não criar problemas e não disputar o lugar que era meu, para que me chamaram e escolheram. Só me quero onde me queiram. Se não me querem não faço questão de estar, não vou disputar algo que só faz sentido se me quiserem lá, e foi essa sempre a minha postura. A próxima que vier poderá não pensar, ou ser, assim, e pode dar-se o caso de não se importar de se prestar a esse guerrear publico perante uma equipa que devia ser liderada de forma consistente e alinhada. 
Disse o que queria dizer, deixei nas entrelinhas o que queria deixar no ar - passei a mensagem, penso que da melhor maneira. Saí de lá aliviada e orgulhosa de mim, como há muito não sentia. Tinha sido capaz, tinha feito o que queria fazer, como queria fazer. Não sei onde fui buscar forças, ou onde fui buscar cara para parecer que as tinha, mas de alguma forma, consegui, e estava feito. 
Finalmente, e depois de demasiado tempo, envio esta música. Às minhas pessoas. Estou livre, disto, desta gente, desta forma de trabalhar e pensar, de muito sofrimento que me fui infligindo por ser assim, e não de outra maneira. Aprendi muito, também porque doeu muito e fundo, e é isso que levo daqui, uma imagem mais aproximada da raça humana. Aprendi muito,  mas muito pouco da actividade, do trabalho, aprendi que as pessoas só trazem a ambição e os fins para o trabalho, o resto, o ser humano, a espinha e o carácter, quero acreditar que deixam em casa de manhã quando saem. Ainda quero acreditar que não lhes falta completamente essa humanidade, essa réstia de decência e espinha. Nem todos são assim, e se chego ao ponto de destacar do conjunto pessoas que simplesmente são educadas e mostram respeito pelos outros, o que diz muito do nível da amostra que é a massa de trabalho desta multinacional (como sempre enchem a boca para dizer), o que não direi das pessoas que me ficam desta travessia do deserto humano. Há pessoas em todo lado que valem a pena, e depois de nos cruzarmos com elas, vão connosco para sempre. Levo uma mão de gente deste sítio, que gosto, que admiro, que respeito. Vou mais pesada do que cheguei, levo mais gente do que trouxe. Agradeço as perdas e os acréscimos, porque neste caso tudo me acrescentou. Estou livre. E desempregada. Agora quero um, no máximo dois, vá, meses de sabática, depois terei de pensar o que quero fazer, como e onde. 

Don't be afraid of your freedom
Freedom
I'm free to do what I want any old time
I said I'm free to do what I want any old time
I say love me, hold me
Love me, hold me
'Cause I'm free to do what I want any old time
And I'm free to be who I choose any old time

(mas sim, estou cheia de medo. de tudo.)

terça-feira, 25 de abril de 2023


 Não se nota, não se nota muito, eu sei. Mas hoje voltei a pintar as unhas desde há mais de dois meses. Mas não as consegui pintar de outra cor que não esta. Não me peçam para explicar, para explicar-me. São coisas que são assim como poderiam ser de outra maneira, porque não há razão. Há um sentir que é assim, que tem de ser assim, só porque sim. Ou porque não, que é das melhores razões para tudo que não é racional. Senão a melhor de todas. Porque gostas de mim? Porque sim. Não sei porquê, não sei explicar, não tem explicação, é assim e pronto. Tudo o que tem uma razão pode perdê-la por argumentação, por demonstração. O que não tem razão não pode ser provado errado, nem certo. É o que é, enquanto for. Essa incerteza, esse medo, não é para todos, não. Não há uma tábua a que nos agarrarmos enquanto tentamos nadar para a nossa costa. Não há nada. Só a vontade de chegar e de acreditar que estamos certos, que conseguimos. A razão é a melhor rede com que viver, mas há coisas que sem deixar a razão, sem tirar a rede, não se vivem. Não acontecem, não nos acontecem. Há anos neste dia, alguém me mandava uma mensagem enquanto vagueava pelas ruas enevoadas da cidade (o dia estava o contrário de hoje, cinzento, triste, fechado, nublado) “hoje é dia para uma revolução”. Não foi, nunca foi dia. Ou noite, e houve tantas madrugada dentro. O dia seguinte a uma revolução é dia de sermos adultos, de fazermos e assumirmos escolhas, de aguentarmos as consequências. Tudo o que, enquanto povo e nação, não estamos a fazer. Parecemos crianças a apontar dedos e a culpar o vizinho, o outro, o contexto, o tempo. Há pessoas assim, como há povos assim. Há pessoas que não sabem assumir revoluções, não sabem levantar a cabeça e esticar a espinha às consequências, até às mudanças que já aconteceram, já se instalaram, mesmo sem autorização. Preferem varrer para debaixo do tapete, fazer de conta que nada mudou, assobiar para o lado e rezar aos céus que tudo corra bem, e nada tenha mudado. Eu tive algumas pequenas revoluções para lidar, todos temos: decidir casar, ter filhos, decidir separar quando já não se está verdadeiramente junto. Depois há as que nos acontecem, que não são provocadas por nós, mas que temos de lidar, assumir, tratar e resolver, viver com elas.  As perdas, os cortes, as escolhas alheias, ou só a vida que se impõe sem que tenhamos uma palavra a dizer. Para a semana, se tudo correr como esperado, a minha vida estará diferente, e é uma pequena revolução, sim talvez, mas é minha, foi escolha minha. A partir daqui não sei, veremos, mas temos de assumir. As escolhas, as vontades, as nossas fraquezas, o que é maior do que nós, o que nos subjuga e nos obriga a reagir, ou não. Dependerá de cada um, suponho. Como é diferente para cada um o que não se sabe explicar, só sentir. E é assim porque sim. Um dia qualquer as minhas unhas vão voltar a ter cor, os dedos aneis, os brincos vão voltar a pendurar-se nas orelhas de haverá mais e outros colares. Ninguém notará nada, e eu não saberei explicar o que mudou, só saberei que é hora, porque sim. 

sábado, 22 de abril de 2023

 

Leva-me a dançar.

Leva-me a dançar num sítio cheio de gente onde ninguém me veja, onde a música seja só minha quando fechar os olhos e me esquecer do mundo com a tua mão na minha. Deixa-me gritar para dentro a liberdade que me custou tanto, tão fundo, e sorrir para fora como se nada tivesse custado e o tempo levasse tudo lavado num sorriso. Leva-me daqui para onde eu ainda estiver, resgata-me das garras dum tempo que nunca foi meu, duma criatura que nunca consegui ser. Que nunca quis ser. Leva-me ao cimo de todos os sonhos, onde as vistas se espreguiçam para lá de todos os horizontes, onde o sol se encosta, aninha, e espera a lua de pestaninha aberta. Amam-se na eternidade de mal se verem, mas esperarem-se a toda a hora, numa poesia sem palavras. Leva-me ao cimo dessa montanha, de todas as montanhas, vamos respirar fundo e encher de pureza a alma, senti-la de novo toda, inteira, como se nunca tivesse sido beliscada, esgaçada, rasgada e apunhalada. Como se estivesse inteira para confiar. Como se sítios sagrados a regenerassem, e acreditássemos de novo. Vamos sentir a poesia outra vez pela primeira vez. Vamos onde há um altar à vida, um lugar filho do luar,  pai de todos os pontos cardeais, com o mundo lá em baixo a rodear-nos por todos os lados, sem nos tocar.  Um alpendre que fala ao peso de cada passo nosso, para nos lembrar que há terra e raízes, e debaixo de todas as estrelas vamos banhar de luar a pele inteira. Vamos despir as noites do frio e vestir-nos de silêncio que fala de dentro. Anda, vamos fechar os olhos e respirar tudo em suspiros quentes, brincadeiras, sorrisos e gargalhadas frescas. Tudo o que sejamos nós e queiramos que o tempo seja. E vamos fingir que a vida é isto e que o resto são só pequenas pausas. Vamos brincar ao faz-de-conta que nada conta, senão o que queremos ver no meio da escuridão.

Leva-me como quem me resgata. Os sítios sagrados são sempre pessoas. Dança comigo.

sábado, 15 de abril de 2023


 Perguntam-me às vezes se ando a dormir bem. Não sei bem, não sei responder exactamente. Sei que durmo,  que fecho os olhos, que me esqueço se é dia ou noite, isso sei. Às vezes sonho, isso também sei. Sonhei com o meu pai há dias. Sei que o abracei muito nesse sonho que agora não recordo todo, mas isso lembro perfeitamente. Sei que nunca sei bem o que responder, porque durmo, mas dormir bem será outra coisa, parece-me. Dei por mim a responder ontem ou anteontem - já não sei... os dias enovelam-se num tempo que se embrulha sem se desenrolar, e a minha cabeça já não destrinça nada - "acho que sim, não sei... há dias em que parece que acordo no dia anterior. Mas afinal já é outro dia.". Como se só tivesse fechado os olhos por instantes. E é isto, esta sensação estranha de todos os dias serem o mesmo, mas outro. Cada dia não tem dia anterior, nem seguinte. É o mesmo. As mesmas perguntas de segundo a segundo, o arrumar vezes sem conta o que desarrumam sem saberem porquê, ou sabendo não quererem saber porque não pode ser, dar os comprimidos, ao fim do dia o jantar, tentar trabalhar um trabalho com um esperado e desejado fim à vista, mas que nunca mais se vê, fazer companhia que é só presença, porque companhia é conversa e troca de ideias, de vidas, de acontecimentos e sonhos, e aqui nada disso existe. Existe sempre o mesmo dia e esse pesadelo. E, ainda assim, cada dia tem muito de roleta russa, as perguntas são as mesmas, mas e a agressividade, será a mesma?, chegará a ser mais violento do que o psicológico desastre que já é? Estar ao pé de alguém que já não traz dentro a pessoa que era nossa, com quem ríamos, e falávamos, e trocávamos ideias, brincadeiras, conversas, medos e sonhos. E cada dia é um dia novo e o mesmo dia. Não há memória do dia anterior, nenhuma das milhentas perguntas respondidas ontem existiram, serão respondidas hoje, explicadas de novo. Segundo a segundo. Os olhos assustados e frágeis, ou carregados de ódio são repetições de fracções de dia. Do mesmo dia sempre. Todos os dias. 

Há dias em que acordo no dia anterior. Acho que são todos.

sexta-feira, 24 de março de 2023




 E é o que faço. E olho e leio, espera. Aquele está à espera e eu também. Não sei bem de quê. Que passe o tempo e que não passe nada. Que não se passe nada. Que o liguem e o façam dizer coisas, que lhe dêem vida através de outros, que o tirem de espera. Que me tirem daqui, que me façam esquecer. Não, esquecer não, ultrapassar, saber lidar, resolver, arrumar por dentro e fechar por fora. Qualquer coisa. Esperar não ter de voltar a olhar para monitores e ouvir apitos das máquinas à volta. Não ver batas à frente nem guardar o cansaço de alguém sem poder descansa-los. E sem isso me descansar. Espero. Mas não sei o quê, não é esperar de esperança. É de matar tempo matando-nos.

domingo, 19 de março de 2023

[foto @snake72]

Hoje é dia do pai. Há dias, a caminho de ir tratar de umas coisas passei por um sitio que tinha cá fora um quadro preto, onde a giz se lia "Dia do pai 19 de Março" e por baixo o desenho de um daqueles bigodes antigos e revirados. Era uma loja de vinhos. E o dia era de sol, pelo menos naquele momento, que os dias andam demasiado bipolares no que também ao tempo diz respeito, mas para mim, de repente o dia fechou-se e eu fechei-me nele. Eu que dizia que todos devíamos aprender a chorar, eu acho que não aprendi, e choro agora sem saber, e às vezes sem dar conta que vou chorar, e as lágrimas nasceram-me não sei de onde, daquele quadro preto se calhar, de todos os dias seguintes ao para sempre, que é também o nunca que nos afunda numa eternidade imposta. Muitas coisas me passaram pela cabeça enquanto tentava saber porque as lágrimas silenciosamente me caíam, sem saber pará-las, lembrei-me de como gostava de beber, quase orgulhoso (era a única que bebia com ele), uma garrafa de vinho comigo ao jantar, lembrei-me de uma coisa que lhe dei há muitos anos, e que era tão, mas tão, perfeitamente certo e feito quase à medida da maneira de pensar do meu pai, da maneira como via as coisas, os dias, as prendas, tudo... que o tinha pendurado no seu quarto, à vista de todos os dias e todos os acordares, e dizia o qualquer coisa como "o dia do pai não é especial, o meu pai é que é especial". E era isto, o meu pai nunca ligou muito a datas, menos ainda a prendas, entendia que as coisas que são diferentes, que são diferentes porque algo as torna diferentes, e essa transformação não vem de imposição de datas ou obrigações, eram assim e pronto. Era uma alquimia do coração. Se as fizéssemos assim, ou se algo as tornasse momentos que ficam, memoráveis. E era isso que aquilo dizia, e que ele gostava, mas sim, foi oferecido num dia do pai. Como terá sido num dia de aniversário que deu o fio que trago ao pescoço desde que o perdi. Foi das poucas coisas que me deu, e digo isto porque sei que este fio foi escolhe-lo, não foi a minha mãe que foi tratar da prenda como sempre fazia, daquela vez, por alguma razão macaca, foi ele que foi escolher e mo deu, e é a cara dele. Porque via beleza na simplicidade. É a única coisa do género que uso desde aquele dia. Acontece-me sempre isto, deixo de conseguir pôr brincos, aneis, colares. Deixa de me fazer sentido durante uns tempos, não sei quantos. Aconteceu com o meu tio, com o meu irmão, e agora. Dispo-me das pequenas coisas que servem para enfeitar, para compor, para dar graça, mesmo que discreta, mesmo que simples, que como o meu pai também prefiro quase sempre coisas simples. As que não se notam a olho nu, as que se vêem de outras formas, as que se sentem de alguma forma. A única prenda que o meu pai verdadeiramente recordava e falava com um sorriso largo, foi a que recebeu atrasada, no dia seguinte e que era a alegria dele desde então, a neta. O que ele gostava dessa coincidência, como que a reforçar o laço com aquele sapito que adorava dormir de fralda em cima da barriga dele. Poucas vezes o terei visto tão feliz como quando chegava a casa e estavam os dois naqueles preparos. Hoje é dia do pai, acabei de dizer à minha filha que devia ir jantar com o pai dela. Mas é só uma data, é só uma instituição, ter um pai que nos ensinou a essência das coisas em gestos silenciosos, e reconhecê-las e chorá-las, mesmo quando não nos ensinou a chorar, é outra coisa. 

sábado, 11 de março de 2023

domingo, 5 de março de 2023

Ler, ler ,ler. 
Música, música, música. 
Voltar ao yoga de manhã, que há meses deixei. 
Passear as bichas ao fim do dia, quer seja de sol ou de chuva. Ao fim de semana sem falhas e em modo prolongado.
Estar com as minhas pessoas, e não fazer fretes a perder tempo com quem não corresponde. 
Cuidar do meu irmão, zelar que a minha filha continua a crescer bem, por dentro e por fora. 
Comer paisagens com aquela respiração funda e lenta que chega à alma, apreciar a solidão como uma prece interior.
Escrever mais, escrever-me de dentro para fora, escrever como quem se lê mergulhada para dentro.
Coisas que deixei, que fui deixando, coisas que me foram levando num processo de anos, coisas minhas, que eu gostava, que me faziam bem, que me faziam pelo menos sentir bem. 
Nos últimos anos tenho lido cada vez menos, não tenho conseguido matar o mundo de fora vivendo o mundo por dentro dos livros. Deixei de ter esse escape, essa capacidade, a cabeça não deixava este mundo, esta realidade, e para me evitar deixei de abrir livros e passei a papar séries, das que não deixam neurónios disponíveis enquanto os olhos estiverem entretidos com aquilo. Li poucos livros no ultimo ano, uma miséria. Para minha vergonha ainda tenho aqui que deixar esse balanço. Que será mais difícil de fazer porque também deixei de comentar aqui as frases que me apanhavam no que lia e permitiam fazer essa cronologia facilmente... que é talvez um sintoma, ou uma consequência, ou as duas coisas em pescadinha-de-rabo-na-boca. Já menos coisas me prendem, me surpreendem, me arrebatam. Estou a tentar voltar a ter sonhos, mas não é tão fácil sonhar como se pensa. Quando os pés são pesados, o corpo parece acumular tempo medido em desilusões, em dores em mágoas, há um olhar que se perde, há vontades que morrem à sede, há um brilho que morre. E é esse brilho que alimenta os sonhos, a capacidade de acreditar a vontade de ir atrás. E o acreditar que conseguimos, acreditar em nós. Talvez esta seja a parte mais difícil, acreditar em mim quando olho as mãos e estão vazias, de tudo o que mexeram e fizeram até hoje, estão vazias. Com se nada tivesse feito, como se tudo se esvaísse por entre os dedos.
É dificil, tem sido duríssimo, olho para trás e não me lembro de tréguas. Vou-me lembrando, sim, de sorrisos por entre as batalhas, durante as guerras, sempre e em qualquer situação, como as risadas que ainda hoje me saem, quando por dentro guardo lágrimas a mais, mas risos ainda deixo que me invadam e não os afasto por medo que me possam confundir por bem. Não, essas contas são minhas e só eu as faço. 
Quero voltar a ler, quero voltar a precisar de música como se o corpo pedisse. Voltei ontem ao yoga e espero conseguir manter, porque me faz bem e me faz sentir bem, pelo menos faz-me sentir menos empenada e perra... e velha vá. E quero-me rodeada das pessoas lindas que consegui ir fazendo minhas, e que são extraordinárias sim, não sei como me aturam, mas isso também é melhor nem querer saber. Há coisas que não se explicam. O amor não se explica, e a amizade é amor sem desejo, sem tesão, de resto tem poucas diferenças. E agora vou passear a bicha que ontem não foi ao passeio. Estou sozinha, tenho de revezar-me :) 
Vou tentar, vou tentar recuperar-me o que houver para recuperar, vou começar pelo que sempre me fez sorrir por dentro, depois veremos. A minha vida vai mudar. Já mudou em tanta coisa que não escolhi, agora vou mudá-la eu e não lhe vou pedir licença, não hei-de morrer, e se for esse o caso ao menos foi a tentar encontrar quem já fui, quem quero ser, quem espero ainda ser. Mesmo que diferente.

sexta-feira, 3 de março de 2023

 Olho o rio ao meu lado, quase sossegado, e parece correr ao contrário. Voltar à origem combater a descida, subindo. Bem sei que é ilusão, que é a brisa que lhe afaga a superfície ao contrário das forças superiores que movem as profundezas, a essência das coisas. Acabo o copo de sangria aos pouquinhos, sozinha, depois de um almoço de amigas. Tento organizar ideias, por argumentos em ordem, mas é só a brisa a brincar com a vida. As profundezas arrastam-me na descida, por muito que não pareça e eu não queira parecer. Há quem veja a essência, a esses damos a mão em muitos abraços por dar. A essência não se prende a coisas, mas àquilo que se vê com a alma.

domingo, 26 de fevereiro de 2023

sábado, 18 de fevereiro de 2023

 Não disse nada. Não te disse nada. Não saberia o que dizer mesmo que pensasse em dizer. Deixei que o silêncio falasse por nós, afinal conhece-nos tão bem. Fiquei com a minha mão na tua, embalei o silêncio, que o nó na garganta não desatava, com festinhas, e aqueles beijos pequeninos que sempre me deste desde pequena e que agora dedicavas à minha filha… beijos de passarinho que ela diz que são teus, e não admite imitações. Dei-tos por ela e por mim, e pouco depois adormeceste. Fiquei ali contigo, assim, até temer que as minhas lágrimas te perturbassem a paz e os soluços que tentava amarrar, te sacudissem do sono de que já não te vi acordar mais (o para sempre é tão esmagador…). Não sei quanto tempo passámos ali, passámos uma vida, toda a minha vida. Foi sempre em silêncio que me ensinaste, me formaste, me fizeste crescer. Me mostraste o que devia ver. É em silêncio que escrevo. É em silêncio que se ama, quem disser o contrário colecciona ruídos. O meu consolo é a tua paz, o poderes finalmente não ter de lutar. E que aí onde estiveres, neste nosso silêncio, eu continue a sentir a ternura dos beijos que que me deste quando por ti os der à tua neta.

Não disse nada, não te disse nada. Somos tão pequeninos, a morte é tão grande.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2023


 É o olhar que muda tudo, que faz tudo. Espinhos serão pétalas, como pétalas poderão ser espinhos. Não é o que é, nunca foi, é sempre o que vemos. Nem sempre vemos bem, mas não veremos de outra forma até que nós mesmo mudemos, ou a realidade se mostrar de outra forma no nosso olhar. A realidade é sempre uma forma, e tem muitas, como a verdade. Mas um dia não muda o ano, nem a realidade, nem bouquets de pétalas camuflam espinhos se os virmos todos os dias, se os sentirmos todos dias a arranhar a alma junto com a pele. Um dia, ou tantos, ou demais.
É o olhar que muda tudo, que faz tudo. E a contemplação é um amor continuado, ou o amor uma contemplação continuada, sim, talvez isso. E que não cansa, descansa-nos, que vai mudando mas nunca muda em essência.

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2023


 É nestas alturas que uma pessoa anseia - deseja ardentemente - sofrer de síndrome de Estocolmo… assim ao menos haveria uma parte boa, haveria o conseguir gostar, ou empatizar, com o agressor… quando isso não acontece os dias são uma lúcida tortura. É o que tenho tido, a lucidez de várias dores que não consigo combater, que não tenho sabido lidar. A lucidez traz sempre demasiada verdade à realidade. Sempre me disseram lúcida, talvez por isso as minhas dores sejam sempre tão intensas quanto analisadas, vividas por dentro e por fora. Talvez isso me impeça de empatizar com o agressor. Talvez por isso sempre me foi difícil compreender quem, sendo mal tratado, justifica o agressor, acomoda, às vezes até lhe destina consideração e respeito, e coisas que confundem com afecto, com amor, quando empatia seria já demais. Mas talvez ajude a atravessar alguns infernos. Eu não consigo. Lamento. Ou talvez não.

sexta-feira, 20 de janeiro de 2023



… e é gente maravilhosa, linda por dentro, mesmo que não tenha as palavras, escrevem-se em gestos, em sorrisos, em olhares que confortam e nos deixam cochilar, descansar daquela vida doente  que os dias não deviam ter.

Também há os que nunca nascem, parece que nunca chegam a nascer, a abrir os olhos, a espreguiçar o calor do sangue, são os ante-projectos eternamente adormecidos em papel pardo, que um dia aparecem esquecidos numa gaveta fechada vezes demais.

E há os que nascem, acordam, aprendem e crescem para a poesia, começam a cumprimentá-la nas mais pequenas coisas com um sorriso cúmplice, com um olhar atento que acende músicas por dentro do silêncio, por dentro dum olhar que por instantes brilha. Passam a viver com poesia. Alguns até gostam, deliciam-se, lambuzam-se e lambem os dedos ao ler alguma. Mas nem sempre. Nem sempre sao as palavras a fazer poesia, é sempre o que as palavras - alguma coisa, qualquer coisa - nos despertam, nos elevam, nos mergulham e raptam para sítios onde não se entra sem poesia. A poesia é esse bilhete de entrada que algumas almas guardam.