segunda-feira, 29 de maio de 2023

[foto de Jacon Sutton]

 "O mundo é só o chão que pisamos, o resto somos nós" - foi uma das frases que escrevi, e a última que disse quando me pediram as impressões daquela experiência, que pediram para repetir para poderem apontar e ficar, depois de andar pela sala de olhos fechados o mais lentamente que conseguíssemos. E é giro, tudo é diferente quando fechamos os olhos. Temos de reaprender a andar, e aceitar o baloiçar do corpo hesitante como um navegar do tempo desconhecido, do futuro, do passo seguinte. Estou num ponto estranho da minha vida, a dias de voltar a trabalhar, de extinguir o meu posto de dondoca, sem qualquer vontade e com a angústia de pensar que não o deveria fazer já, que preciso de mais tempo, que preciso ainda de me ajustar a muita coisa, de reaprender a andar. Pensei que teria pelo menos dois meses antes de começar a procurar, mas ao invés, vieram à minha procura, muito tempo antes de eu esperar... e por isso esta experiência em que mergulhei nos primeiros dias de liberdade ficam agora meio desamparados, como eu. Há alturas na vida em que começamos a procurar coisas diferentes, ou que julgamos diferentes, e descobrimos que afinal têm muito de nós. O yoga entrou devagarinho nas minhas rotinas, mas tinha o condão de me voltar para dentro, ao mesmo tempo que me calava os diálogos interiores, e isso dava-me paz, descanso de mim. Fiz do yoga uma actividade exigente em que tudo requer atenção, o alinhamento, a posição, o alongamento que devemos sentir, os musculos que ficamos a conhecer e não sabíamos da existência, e isso tudo não deixa espaço para outras vozes - e percebi que era a altura em que habitava mais, mais do meu corpo. Em que tinha mais consciência de cada recanto meu, e do que perdemos no meio do uso diário de nós mesmos. Então embarquei nesta coisa de saber mais, por curiosidade, por vontade, por responsabilidade também... para saber o que ando a fazer, porque sozinha e em casa, sem conhecimentos suficientes, posso magoar-me sem saber como (e já aconteceu andar com uma dor de costas mais de um mês à conta disso mesmo). E agora, depois do primeiro fim de semana de formação em meditação e pranayama, sinto-me meio perdida, talvez até meio na direcção errada. Mas a vida não se compadece de nós, e não espera por nos desenvencilharmos de nós mesmos, de nos resolvermos, de parar a vida, até que possamos acompanhar o ritmo e os dias... daqui a três dias começo a trabalhar e vou ter de encaixar tudo, e vou ter de ser toda em cada coisa. Ainda não sei como me vou fazer, ou aos dias, ou à cabeça que deve comandar as coisas se ainda mal se aguenta com tanta coisa que aconteceu durante tanto tempo, e só agora pareço perceber isso. Depois penso o que diria meu pai de tudo isto... ou até a minha mãe se fosse possível uma conversa... e não sei. Mas sei que teria tanta curiosidade quanto eu em relação a muita coisa, e isso aquieta-me, mas não me reduz a angústia, o peso, o medo. Esse medo de caminhar devagar, descalça e de olhos fechados, que obriga a reaprender equilíbrio, a contar passos para me orientar, a levar as mãos esticadas à frente para saber ao que vou e amortecer os choques... mas sempre esta sensação, de que o mundo, o lá fora é só o chão que pisas, o resto é tudo cá dentro, e não tem de ser escuro. Mas baloiça como os barcos a ajeitarem-se às ondas do mar. Como uma dança de que não conhecemos a música, onde só o corpo e alma são instrumento para tocá-la e dançá-la. 

Nessa complexidade simples de não haver como tocá-la sem dançar, nem dançá-la sem a tocar. 

quinta-feira, 25 de maio de 2023


 Olhar para trás,

 e sentir que é já para trás que se olha.

(e é bom, no meio de tudo, sentir que ficou lá atrás, é bom)

 Se eu soubesse explicar não estava aqui, assim, com as palavras a entermelarem-me os pensamentos, com as teclas debaixo dos dedos sem saberem como dizer o que dizem, com a cabeça a afogar-se, a afogar-me. Neste ponto onde nada faz sentido, e onde se sente o sentido de tudo, como uma clareza que não se toca, mas se desembrulha de forma estranhamente límpida algures no nosso ser. Como um destino que se adivinha no emaranhado de possibilidades de futuro... porque vão todas brutalmente acabar ali, naquele nó. Onde tudo se repete, onde tudo se repetirá, onde eu serei outra que já sou sem saber. Direi um dia o que oiço? Serei um dia o que vejo? E sinto a resposta como se a soubesse, mesmo que não a saiba. E a cabeça a afogar-se na impossibilidade abstracta de outras possibilidades, que não se sentem possíveis, e os soluços já não travam a velocidade de tudo que me passa pela cabeça, tudo que quero evitar sem poder. E sempre este ponto, isto, de não chegar, de não ser suficiente, de não saber ser mais ou somente ser capaz de ser eu, sem ser. Sendo outra que não pense assim, seja assim, sinta assim, faça assim, que não se afogue assim, neste ponto. Alguém que não se tenha deixado quebrar, magoar, cair e diluir. Alguém que ao fim de um dia bom  não o perca afogado no meio de frases que ainda não dissemos, mas que ouvimos de outras bocas que um dia será a nossa. E isso mata-nos enquanto dá vontade de morrer antes disso.  E afogamo-nos no meio de tudo isto. E não pedimos ar, só que acabe depressa. 

E escrevemos, na tentativa dum ponto final.

segunda-feira, 22 de maio de 2023

 Dar nome de árvore aos beijos, para que dêem flor e fruto.

(das frases com que se acordou um dia qualquer. Daquelas que não nos largam, que se colam a nós a cada respiração... a cada sorriso também, se a frase for destas :) ... depois escrevinhamo-la algures, se tivermos juízo e pachorra, para nos largar e para mais tarde podermos voltar a ela, para lhe darmos vida quando a conseguirmos casar com uma fotografia. E um dia percebemos que a fotografia está ao alcance do abrir duma janela de todos os dias. )

Que nome dás à tua?

Bom dia!

domingo, 21 de maio de 2023

 


Há realmente alguma coisa reparadora no silêncio da natureza. Um silêncio que não é oco, não é vazio, é cheio de uma vida que nos enche, que nos repara, que nos recupera. Foram três noites e não deu para tudo o que queria, ou como queria. Ficar doente sabe deus com quê não ajudou, mas deu-me sono e dormi, fiz yoga quando me apeteceu com os olhos a alongarem também até ao horizonte. Ouvi musica enquanto cozinhei, li enquanto os olhos não se quiseram fechar. Tudo num ritmo muito próprio, muito meu, muito sem horas. As noites na serra são frias e o céu tirita de estrelas que não conseguimos contar, nem queremos.  O calor da cama conforta e aninha, enquanto os olhos se distraem pelas janelas abertas à paisagem, com as luzes da vila ao fundo, qual presépio fora de época. E a cabeça vagueia não se sabe por onde, mas volta a nós e devolve-nos, porque não há ali mais ninguém, só nós e quem trazemos dentro. Só nós e as recordações. Só nós e os sonhos. Só nós e o que nos faz, e nos fez. E a Pintarolas, claro, que atrevida elegeu um sofá de baloiço para cama mesmo em frente à janela. 
O que custou foi o regresso, e pensar no que se aproxima, no tempo que afinal não vou ter como pensava, que tudo se acelerou, que o tempo encurtou. Que a dondoquice está em perigo de extinção desde o telefonema com uma proposta, que a consciência manda aceitar porque é aliciante, e porque dondoquice não é opção de vida, por muito que me apetecesse (e precisasse) mais tempo de descanso, de reorganização, de ordenar ideias e interiores remexidos demais. Vamos ter menos tempo para fazer o que pensávamos fazer em mais, vamos ter de esticar tempo e dias para fazer tudo o que queríamos, projectos novos, facetas de nós que queremos descobrir se são nossas mesmo. Para explorarmos caminhos em nós que não sabemos ainda onde vão dar. E escrever, obrigar-me a sentar e vencer a preguiça de me desenovelar, de me desenterrar dos escombros dos últimos tempos. E aprender, aprender mais coisas, porque aprender também alimenta. E pensar em voltar. Em voltar a nós, não aqui, mas a qualquer lugar onde consigamos estar presentes, onde a alma tem um corpo perfeitamente seu, que habitamos verdadeiramente, numa plenitude que só certo silêncio compreende, e explica.

quinta-feira, 18 de maio de 2023



 Dias que enchem a alma e nos libertam a cabeça, com terra calcorreada debaixo dos pés e sol alto no olhar. Passeios e caminhos, estradas que acariciam as curvas da terra e fazem a alma dançar ao som das músicas que se vão sucedendo em sorrisos que não sabem cantar. Locais de silêncio e águas que vão correndo calmamente para onde têm de ir, numa frescura descomprometida e livre, que fazemos por beber. Pausas que fazem o tempo ter um sentido que não precisa de razão, como se a vida só se vivesse nesta suspensão do quotidiano, nos intervalos dos dias. 

Eu conseguia habituar-me a esta vida de dondoca sem esforço, a sério… anda-me a saber como a água fresca aos sedentos. Sede de vida também se sente, parece-me.

terça-feira, 9 de maio de 2023

 O meu pai ontem não fez oitenta anos, hoje a minha filha faz dezassete. Bem sei que é lugar comum dizer que não se sabe como crescem tanto e tão rápido, como o tempo passa sem se dar por ele. Mas dá-se por ele exactamente neles, nos filhos. São o nosso melhor espelho, para nos dizer do tempo, e do que temos de bom e de mau, porque o vemos neles melhor que em nós. A minha pequenita tem muito de mim, já tem é pouco de pequenita, e é também por isso que chocamos tanto e achamos normal... porque discutir é normal e os feitios não são para nos calarmos. Depois é teimosa que nem uma mula, e touro, como o meu pai. E eu tenho a mania que tenho sempre razão, já ela acha que sabe tudo. A modos que os dias não costumam ser monótonos cá em casa :))) safa-nos (às vezes) termos as duas sentido de humor e vontade de rir. Depois temos conversas sérias pelo meio, onde argumentamos e pensamos juntas, trazemos novos olhares sobre paisagens antigas, ou novas. Tem sido um caminho muito partilhado e uma viagem muito bem temperada (às vezes demais). E hoje, hoje acordei com a ideia de que nestes dias as mães deviam ter a prerrogativa de escolher a idade que os filhos deveriam ter, só hoje, só neste dia. E hoje a minha filha teria meses, e caberia perfeitamente em modo sapito em cima da barriga do meu pai, ela de braços e  pernas encolhidas, de dedo na boca e toda aninhada na ternura dele. Hoje dava tanto por chegar a casa e vê-los aos dois naqueles preparos. Ela só de fralda em cima da barriga dele, deliciados os dois naquela doçura lá deles. Tantas fotos se tiram, de tudo e mais uma botas, e aquela não tirei, mas guardo-a na memória dos meus melhores sorrisos. Que a doçura nunca te falte, e que o teu avô te continue a dar todos os beijos pequeninos, que eram só dele, através de mim, para que te lembres da ternura dele e donde herdaste a tua.