quarta-feira, 29 de abril de 2020

[foto @sergoisrael]


"Nada há de mais íntimo do que a compreensão.
Quem não te compreender não vai saber como te amar 


— não saberá quem és."


Alfredo Serras, «Inéditos e apócrifos»

(intimidade rapinada descaradamente ao xilre)

Não saberá, amará apenas uma ideia ou um sonho, não a realidade do que somos -  as sombras, os medos, as ternura mais frágeis, as doçuras mais inocentes. Só quem sabe o que de mais íntimo guardamos, de escuridão e de luz, pode compreender, saber por dentro, nas sombras, o que há para amar, e então, sabendo-nos reais, amar-nos ou não. Qualquer coisa menos que isso é ficar aquém de destino nenhum. É não chegar a sair de si.

terça-feira, 28 de abril de 2020

Mandam-me, assim, só...

-... lembrei-me de ti.
-gosto!...bem me queres
-sim
-e eu a ti.

Não é preciso muito. Lembrarem-se de nós assim, é bem querer. E podemos mais querer?
Gosto de receber estas coisas, e de as enviar também. Lembrar-me de alguém e mandar uma mensagem que diz apenas que me lembrei desse alguém e porquê, porque as pessoas que queremos bem andam sempre connosco, estas mensagens são prova - vemos um sítio, uma expressão que se ouve, ou certas cores, ou músicas, sons que despertam algo, cheiros... meu deus cheiros... ou umas flores, e então materializam-nos o nome, só isso.
De mim lembram os bem-me-queres, ou as margaridas, às vezes qualquer coisa que seja “a minha cara”... e então eu vejo como me vêem, e esta fotografia é “a minha cara” e eu gosto, afinal.

[Roger Wolfe, via @opoemaensinaacair]

Não funciona, nem tem conserto. 
Não é avaria, mas não sei o que é. 
Não é nada...E é tudo assim. 
Até não ser.
Até ser tudo ao contrário, e nada ser assim. 
Isso sim, é uma grande avaria, que não se quer consertada.    
É a imperfeição do molde, a peça rara, o defeito único, as quatro folhas do trevo.
Uma anormalidade que não cede a rusgas, mas em que podemos esbarrar sem procurar.
E só encontra quem vê.
Normalmente não funciona.


sexta-feira, 24 de abril de 2020

Percebo quem já não distinga os dias, quem esteja farto de estar em casa... percebo, mas eu não me queixo disso, só estou farta de ouvir na rádio para ficar em casa, quando o oiço a caminho do trabalho, todos os dias nas duas últimas semanas. Menos hoje, pelo menos. Depois não sei. E podiam ser dias de trabalho como mais pacíficos e calmos, mas não, pelo contrário. Depois desta quarentena quem vai precisar duma quarentena do mundo sou eu... e não sei se me fartaria...

segunda-feira, 20 de abril de 2020

... estava capaz de dormir aqui, aninhada no cadeirão da varanda, com a manta enrolada para espantar o frio... está-se bem aqui, s tranquilidade envolve-nos com a noite, e oiço isto, que se cruzou comigo hoje não sei por que artes, e em todo este cenário, é impossível que algo em nós não sorria. Nem que seja com a ideia de que, aqui e agora, dançava isto, aninhada também, mas noutro cadeirão :)

domingo, 19 de abril de 2020


Será que há existência sem constatação? Será que se é, inteiramente, sem que alguém nos conheça? Será que a pedra que vejo, e a que chamo pedra, seria uma pedra se não lhe chamasse pedra? Se não a visse?
Eu existo sem que seja vista, mas para ser não será preciso alguém que nos veja, nos conheça, nos diga até o que vêem, como somos entendidos, que nos desvende até para nós?
Será que sou inteiramente sem que ninguém saiba o que a pele encerra dentro de si? De mim? É preciso outro para sabermos que somos?
Talvez haja existência sem constatação, mas e para ser?
Talvez não baste existir, a não ser que se exista em alguém - e aí somos. Às vezes, inteiramente.

Existo e tenho nome (tantos), mas sem que me chames, será que sou?

quarta-feira, 15 de abril de 2020

Se calhar sou, pois sou... gosto da correspondência, das cartas, das palavras como veículos de sorrisos, de pensamentos e outras coisas essenciais: a reciprocidade, a intimidade chegada, mesmo que longe. O saber o que acolhe a outra ponta da mensagem, o sorriso, a malandrice, ou só a troca de parvoíces que fazem rir e chorar por mais. Mas mais do que palavras, o que importa é a correspondência. Em tanta coisa que já não se usa, e falta. E nunca se pede.

domingo, 12 de abril de 2020

Sento-me à varanda para apanhar os últimos raios de sol, trago livro e cigarros. Poiso-o quando vou para o abrir, há música no ar. Um saxofone enche o ar com a sua voz solitária, que acompanha todos os que estejam a apanhar os últimos suspiros desta luz quente. Pássaros anónimos juntam-se a ele, e não estragam. Todos solitários, e solidão, agora, nenhuma. Só música, sol e um livro fechado em cima da mesa, a aplaudir este fim de dia. Sabe-me bem, decerto não só a mim.
Chegam as nuvens, espanta-se o sol e a música esconde-se. Não se sabe até quando.
Há demasiadas nuvens na vida dum dia de sol incerto, mas enquanto o sol nos souber bem, aproveitá-lo é certinho... :)

Boa Páscoa.

sábado, 11 de abril de 2020

Mais um sábado. Cinzentão e a convidar a leituras, chá, filmes e sofá.
Aninhamo-nos, umas mesmo, outras no aconchego só de olhar...
Quatro meninas em casa, todas ainda por vestir... algumas não deixarão de estar... :))
Bom sábado, com pelo menos, uma ideia aconchegante...
Algumas luzes por trás das janelas, o silêncio medido a conversas que escapam, a espaços, dos vizinhos. Uns passos apressados que os olhos não alcançam, um miar compassado que se esconde. O ritual de fechar o dia e encerrar em mim a noite. O cigarro aceso, calado no tempo que o consome. A vontade de desfazer o que não chegou a ser feito. Conversas que não tive, passeios que não dei, abraços que não se fecharam em quem deviam. Balanço-me no que sou e no que devia ter sido, no que devia ser, também. Talvez tenha sido a conversa inesperada de mais de meia hora, que tive há pouco, com quem pouco falei na vida, desde pequena. Penso naqueles com quem também devia ter falado mais, e que me faltam, e que lembro muitas vezes para dentro. Penso na injustiça da paciência que tantas vezes me falta para quem eu não devia faltar com nada. E maldigo esta ironia de, para protegermos quem gostamos, e não suportaríamos perder, os deixarmos tão entregues à solidão e ao tempo que não passa, e que a cada instante não deixa de contar prazo. Todos temos um, e o tempo de estarmos todos a decrescer,  e gastamo-lo, assim, numa conta de deve e haver, dum risco que não deveria haver assim.

quinta-feira, 9 de abril de 2020

[foto @sarvesh_chaudhari]

Chove. Mas hoje vejo chover, e ouço, com calorzinho debaixo da manta e um toque de canela que resta no ar com o cheiro do café. O primeiro de hoje. Hoje em casa. E chove, e não faz mal, ou faz porque as cadelas assim não passeiam (em compensação ressonam aqui aos meus pés...), hoje que as podia levar, à tarde, ao jardim ao fundo da avenida. Ou à noite, quando as ruas parecem tiradas dum quadro de silêncios, ainda mais que nas noites da cidade em pleno Agosto, e trucidem-me, mas eu gosto. Há sons que só se ouvem assim, no silêncio fundo, esse paradoxo de quebrar o silêncio e só no silêncio se ouvirem. E a estranheza de alguns em achar fantasmagórico e triste o que eu acho tranquilo e calmo, ainda que triste a razão subjacente.
Chove. E o céu está um opaco fundo quase branco. E eu dedico-me ao que há tempos não me passaria pela ideia: um curso online sobre algo que não é da minha área, nem profissional nem de formação, mas é uma coisa que gosto. Ainda não sei bem se gosto do curso, nem é bem o que eu estava à espera, mas até agora não está a ser mau, é verdade que o saber não ocupa lugar e há coisas que até gostamos de saber. Acho que fiquei adepta, ainda por cima gratuitos, o próximo será sobre noções básicas de psicologia... já andei a ver.  Já ouvi muita gente dizer que está farta de estar em casa, e eu até percebo, mas eu não estou e arranjava coisas para fazer... melhor para ler e para ver, para ser honesta. A parte do ah e tal é bom para arrumar coisas... é muito verdade certamente, e eu gostava de ser assim, a sério, mas geralmente gosto (muito) mais de arrumar coisas dentro de mim - nem que seja espaço para coisas novas, e vontade delas - , ainda que volta e meia tenha mesmo de arrumar algumas coisas: a despensa, por exemplo, está na minha lista de coisas para fazer... desde que isto de me fazerem ficar alguns dias em casa (sem teletrabalho, há trabalho mas é no escritório como sempre, só menos dias) começou. E o dito curso já comecei, um livro novo também, agora a despensa... não. Mas está a chover e não me apetece. Mas não é da chuva ;)

quarta-feira, 8 de abril de 2020

É.
Ou que nos queira perceber.
Despir-nos a pele e querer ver, perceber. 
Gostar da pele nua, e de a despir. 
De conversar e de tocar. De ser tocado. Mesmo à distância. 
Numa intimidade que não deixa espaços, nem cria vazios. Deixa respirar melhor. 
Num perceber que é mais conhecer, e querer. É nunca saber tudo, e sabê-lo, a cada descoberta. Perceberem o que nos move não é saber onde vamos. Ou como. 
E ir ao lado nem sempre é ir junto. E ir junto nem sempre é chegar - e às vezes não chega.
Como perceber não é saber tudo: há uma distância, onde cabe a surpresa do que vamos querer perceber. Ou vamos perder, sem querer, ou saber porquê.

[quando vi esta foto, vi só as primeiras quatro linhas. Não sei donde veio o resto, mas estava lá. De certeza, eu só não soube logo. É, talvez em tudo, o não saber que nos prende e se gosta, tanto como o gostar de perceber o que se sabe, ou mais.]

sexta-feira, 3 de abril de 2020

[Adília Lopes]

Como se não houvesse nada a dizer, as palavras fogem-me. Escoam-se por entre os dedos, como a luz que cai pelos ombros do horizonte. Talvez haja palavras a mais no mundo, ou talvez tenha feito por esgotar as minhas. Como se não lhes dando corpo elas não (sobre)vivam, ainda que existam. As palavras que ficam por dizer não são silêncio, são silêncios interiores adiados, afiados pelo tempo. Tempo que agora sobra, de resto nenhum. 
Acontece-me muitas vezes partilhar palavras por dizer com cigarros que não ficam por fumar, à noite, na minha varanda, onde o tempo parece parar e o mundo seguir. Mas se não as escrevo, são só pensamentos, coisas que fogem ou de que fugimos, indo tantas vezes ao seu encontro. Como encontros que mais não são que desencontros no tempo absoluto para todos, e diferente em cada um.
Acontece-me sentir que o cansaço me chegou às palavras, como um esqueleto amolecido de diálogos impossíveis, de mim para mim. Ou só negados. Como se isso não fosse a sua própria, mais violenta, afirmação.
Acontecem-me dias em que, na minha varanda, a tarde é só uma noite desencontrada do tempo do mundo.