quarta-feira, 28 de setembro de 2016


(...)
mas já me doem as veias quando te chamo
o coração oxidado enjaulou a vontade de te amar
os dedos largaram profundas ausências sobre o rosto
e os dias são pequenas manchas de cor sem ninguém
(...)

Al Berto

Quando será que a poesia volta à minha vida?
Quando será que a poesia me volta a dar vida?
Quando será que volto a dar vida à poesia?
Quando será que a minha vida volta em poesia?
Ler não é viver, e a poesia vive-se, respira-se, sente-se por dentro do verso, como sinto estes, assim tão rasgados nos dias que apodrecem e me devolvem uma dor que quero espantar, que não quero viver, mas vivo, dentro e fora dos versos. O inverso da poesia ainda é verso e ainda é poesia. Quero outra poesia, outra vida. Passo a vida a ler de tanta coisa que queria viver, ou que ainda não esqueci que vivi, ou que já não espero viver e prefiro esperar esquecer, mas a poesia acorda o que nunca adormece, o verso que a língua prende num beijo que ficou por dar, mas entregue em todos os gestos e em todos os olhares que falaram o que nunca se pronunciou, e que nunca será ouvido. Jamais.

segunda-feira, 26 de setembro de 2016



...há dias em que é muito difícil. Tudo...
Chatear-me com a miúda, ficar neura, tentar afastar a neura com um café com o N. e uma troca de brincadeiras com um primo maluco, a neura não abandonar o barco, a meio da tarde saber que tiveram de ir para o hospital de urgência porque são teimosos e não ouvem o que se lhes diz, apetecer-me dar palmadas como às crianças, lidar com o pânico e o medo de quem fica do lado de fora do hospital, aguentar as pontas quando não há ponta por onde se pegue, tentar trancar a neura para animar outros, fazer o jantar para todos e desejar só chegar ao sofá, sozinha, ligar a televisão para estupidificar o cérebro e esquecer-me que a minha vida existe e que amanhã começa mais uma semana... E para quê? Sim, para quê? Irra que estou farta disto, de tudo. Desta vida estúpida, da estúpida da minha vida, de mim, de estar amarga e não sei porquê, de me deixar estragar por quem me estragou sem já sequer se lembrar que eu existo, estragada ou não, por não conseguir dar-me a volta quando não há volta a dar, a não ser continuar e fazer de conta que nada foi. Quando já foi tudo o que havia para ser e não sei o que me resta para ser, para eu ser. Evaporei-me e já nem a intensidade me condensa. Preciso de me chover de novo, de começar um ciclo, de renascer, e amanhã começa outra semana e eu continuo sem saber porquê ou para quê. 

[escrito ontem à noite mas não sei porquê não foi publicado]

quinta-feira, 22 de setembro de 2016


... O meu deve estar cravejado de buracos negros, só pode...
Nos últimos anos tem sido um atrás do outro, onde tudo parece desaparecer, ir pelo ralo, sem apelo nem agravo. Sem eu conseguir evitar. Às vezes leio coisas antigas e pergunto-me como tinha sempre coisas para escrever, para dizer, para tentar explicar. O amor apaixonado é uma fonte inesgotável de coisas boas, de poesia por dentro do olhar que se deita sobre o mundo. Tinha sempre vontade de encontrar coisas giras ou que dissessem o que eu sentia, poemas que diziam quase o que eu queria dizer e eu tentava dizer o resto do meu sentir, ou que lendo me despertassem sentires que eu reconhecia. E as brincadeiras, o sentido de humor, a ironia o meu característico sarcasmo... Às vezes pergunto-me para onde foi tudo isso... E parece que descubro mais um buraco negro que engoliu tudo. Isso tudo e a vontade disso tudo. Ainda que eu ache que ainda está tudo cá dentro só que adormeceu. Será que se dormir tempo demais desaparece? Eu gostava tanto dessas coisas, das brincadeiras, dos sentimentos doces, do sentir enorme, da intensidade que pesava mais que tudo fazendo-me ao mesmo tempo sentir a leveza de só ser, só sentir. Ter momentos de quase flutuar. Não quero ficar amarga, sempre o disse, não quero deixar que os últimos largos anos da minha vida me tirem o que gostei de sentir em mim. Mas a verdade é que estou céptica, não acredito nas pessoas e ainda menos em mim, enganei-me demais acreditando nas sensações que tinha, no que sentia sentirem. Já nem acredito que haja a sorte de certas coisas serem recíprocas, de haver dois gostares parecidos que se encontrem, se tropecem na vida, se vejam e não mais se larguem. Acho que isso é coisa que só se sente de um lado, e se tivermos a sorte de o poder sentir e viver. O resto é coisa de filmes e livros escritos por gente que o sentiu e passou para o papel uma realidade a dois, o sonho,  que na vida real foi de um só. 
Leio coisas minhas antigas e surpreendo-me com o que escrevia, de como as coisas me saíam, de como ainda sei exactamente o que é aquele sentir, mas agora subtraído do acreditar, ou da esperança de poder ser vivido, seja com quem for. Também leio coisas de há um ano, ou dois, e percebo que estou diferente, já não luto comigo e com tantos dos meus porquês, falo do passado como passado, como realidade acabada, como aceitação talvez. Ter aceite e aceitar não entender. Li algures uma coisa sobre a sabedoria e fiquei a pensar naquilo, dizia qualquer coisa como a sabedoria era não querer saber o que não se podia saber, eu andei a pensar naquilo e acho que sim, a verdadeira sabedoria é saber distinguir entre o que é possível saber e entender e o que é apenas perda de tempo e murros em pontas de faca. 
Acho que já não consigo ver as coisas como via, e tantas perguntas que eu tinha, tanta coisa que queria perceber, são todas em última análise, e de alguma forma, respondidas agora pela mesma resposta, como uma chave mestra que fecha todas essas portas a respostas abertas, a respostas por explicar: eu não era amada. Isso no fundo dispensa quaisquer outras explicações. Explica tudo. Eu não era amada e ponto final. Já alguém dizia alguma coisa deste género, que também acabava assim - "ou é amor ou não é, e ponto final" -, e eu já não me lembrar exactamente da frase, mas que sei que não era esta, prova que realmente algo em mim está diferente.  Resta saber o que mais se perdeu em mim de mim. Que parte esta história toda me arrancou que eu não consiga recuperar. E se essa não era a minha melhor parte - o melhor de mim, o melhor que eu podia ser, e o que afinal era mais eu. E desapareceu da face da vida. E se desapareceu fico-me a perguntar se essa parte era realmente minha, ou só emprestada.

terça-feira, 20 de setembro de 2016

[livro: Um rio chamado tempo uma casa chamada terra, Mia Couto]

... Acho que eu também. As ideias gastaram-se por excesso de uso, se calhar. As lembranças, quanto mais se usam, menos se gastam, mais duram.

"Não, ela fala é o nada" - porque ela fala o silêncio, o silêncio também comunica, tem significado, diz coisas: fala. Só nunca se sabe o que entenderam, o que foi entendido ou não entendido. No silêncio cabe tudo, é uma prova por provar, um amor por viver, uma palavra que se nega, ou um facto que nada prova, um amor que nunca existiu, uma palavra que nunca chegou a ser pensada. Pode ser tudo, mas é sempre alguma coisa.

segunda-feira, 12 de setembro de 2016



"O amor a castigara, a vida não lhe oferecera presentes. 
O amor nos pune de modo tão brando que acreditamos estar a ser acariciados."
"Doença tem começo? Ou sendo como o amor: 
essas coisas que só existem depois de serem lembradas?"
Mia Couto, in um rio chamado tempo, uma casa chamada terra

O amor é tanto pior para nós quanto melhor foi. Quanto mais nos sentimos bem e acariciados pela sorte de amar de certa maneira que sentimos certa, mais sofremos depois o castigo desse amor já não poder ser amado. Ou nunca o ter sido como pensávamos. E sim, só se sabe que já nos habita quando algum sintoma nos surpreende com a certeza de que já fomos infectados. O nascimento é anterior à consciência da sua existência - quando já é tarde demais, quando já nada se pode fazer, ou travar, ou tratar. Desconfio que alguns tipos nem têm cura, nem do tempo, que dizem ser curandeiro de mão cheia, infalível. Mas ainda estou para comprovar...
Doenças incuráveis lembra-me o espanto que disfarcei hoje, por as cores na pele se terem desvanecido, diluído, perdido. É a doença a comer a saúde, o sangue novo. Amanhã faz uma semana que levou sangue novo, duas doses, e está a perde-las a uma velocidade acelerada. O medo instala-se por trás do que se mostra, mas cresce. Não estou preparada para perdê-lo. Não estou. Tenho medo e não tenho nada com que lutar, as minhas mãos estão vazias e a guerra não a posso fazer minha para enfrentá-la eu. Nada está nas minhas mãos. Há coisas demais, importantes demais, que não estão nas minhas mãos, ao alcance das minhas acções ou decisões. Nem agora nem dantes... Pareço uma espectadora, a ver na tela passar a minha própria vida, escrita por alguém com requintes de malvadez e um sentido de ironia bem aprumado.

sábado, 10 de setembro de 2016


Os fins de dia sentem falta de alguma coisa e algumas noites são vazias até de pensamentos. Não de todos, dos que acalentam a alma, e tudo parece deserto. Os minutos como grãos de areia. E o horizonte é ao fundo de um lençol imenso de areia - um mar com ondas petrificadas. E foge, a cada passo que damos ele recua um passo, e a vontade de caminhar a areia vai morrendo lentamente. A vontade, cada vez mais magra, deixa de ter fome e o sol aumenta a sede que morre no sangue que não parece correr. Havia alturas em que o deserto era caminhado com gosto de sal na pele e de mar na boca, o sangue tinha sede de sol e não se cansava de correr para o coração. As noites floriam das recordações que se viam por trás dos olhos fechados e nos acalentavam a solidão pela doce ilusão de verdade bebida no calor dos momentos.
Hoje o coração é este deserto de que vos falo, não sei se é ele que me habita ou eu o habito a ele, tão desabitado, tão árido. Um dia destes acordo toda feita de areia, petrificada por uma qualquer onda que se esqueceu de chegar à costa.
Há noites tão vazias que o vazio vai a meças com o horizonte. E o desiludido cansaço é tanto que o corpo não sente, a alma não sonha e a vida se esquece de acontecer.

terça-feira, 6 de setembro de 2016



"Acordar não é de dentro.
Acordar é ter saída." - João Cabral de Melo Neto
[livro: um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, de Mia Couto]

Cheguei ao terceiro capítulo, de que me agrada o título, e fico parada em frente a estas duas linhas - que em vez de me acordarem me fazem sonhar significados que nunca pensei - "Acordar é ter saída", "não é de dentro". Talvez seja verdade, talvez acordar não seja uma coisa de dentro, talvez seja uma coisa provocada, filha dum gatilho qualquer.. Talvez uma saída. Talvez. Mas há o acordar por ser acordado e há o acordar sem chamamento de fora, o abrir os olhos porque o sono se esvaiu.
Mas numa coisa parece haver razão. Quando vemos saída, de repente vemos tudo de forma diferente... Como se acordássemos dum sono dormente, indolente, e quase doente às vezes.
Mas, antes de chegar ao fim do segundo capítulo, tropecei nestas:

 " em África os mortos não morrem nunca. Excepto os que morrem mal. A esses chamamos de 'abortos'. Sim, o mesmo nome que se dá aos desnascidos. Afinal, a morte é outro nascimento."

A morte é outro nascimento - talvez, mas nem sempre -, como a cada não corresponde um sim - mas sempre e em todas as vezes neste caso. É como o seu reverso, já a morte nem sempre tem reverso correspondente. A uma morte não corresponde sempre uma vida ou um (re)nascimento. Infelizmente.
...Depois uma palavra inteira, completa, que não existe e ainda assim me faz sorrir. Há palavras que nos fazem sentir o que dizem, mesmo que não existam. Sensação tão familiar para mim... Palavras que fazem sentir e sorrir, mesmo que em verdade não existam, nunca tenham existido, no que descrevem ou falam...

"Vamos rompendo entre a enchente, espremidos um contra o outro como duas pahamas, essas árvores que se estrangulam, num abraço de raízes e troncos. De encontro ao peito, sinto os seus seios provocantes. Provoquentes, diria meu avô Mariano."

Há certo tipo de provocações, conscientes ou não, que são sempre quentes. E eu gosto dessas. Não gosto das provocações para sentimentos frios, para esfriar o outro, rebaixar o outro, humilhar o outro. E estou farta dessas. Gosto das provocações quentes, mesmo longe, que aquecem, que acendem, que provocam o que de bom se pode ter só de pensar em alguém. Físico ou não, de pele ou de alma. 'Provoquente' é uma palavra inteira, completa de significado, para mim. Só que não existe. Como a palavra "amorar", tão bem inventada, tão nada sentida. Como tanta coisa, como abortos que nunca nasceram, nem sabem morrer. Que não encontram reverso.

segunda-feira, 5 de setembro de 2016

"- Eu volto, Avô. Esta é a nossa casa.
- Quando voltares, a casa já não te reconhecerá - respondeu o Avô.
O velho Mariano sabia: quem parte dum lugar tão pequeno, mesmo que volte, nunca retorna."

Mia Couto, in 'um rio chamado tempo, uma casa chamada terra'


Será que é assim com toda e qualquer pequenez? Quando se volta já não se cabe lá? Nunca mais se retorna, deixamos de reconhecer o lugar que era nosso?
E se for, não duma pequenez que se sai, mas duma grandeza? Será que todos os outros lugares nos vão parecer apertados? Curtos? Pobres? Pequenos para um regresso que não volta?
Onde será que vou caber agora?


"Em silêncio, olho em volta. Cercado pelo sossego da pequena igreja me apetecia, naquele momento, deixar de ser filho, neto, sobrinho. Deixar de ser gente. Suspender o coração como quem pendura um casaco velho."

Mia Couto, in um rio chamado tempo, uma casa chamada terra

Era o que me apetecia também, entrar numa igreja, que ha tantos anos não entro sozinha, só para me ouvir pensar e tentar acreditar no que acredita quem lá vai rezar. Para ficar assim, só filha de Deus, sem me sentir neta, sobrinha, irmã, filha e mãe. Sem sentir raízes que prendem ainda que sejam o que nos alimenta e nos forma o corpo para enfrentar o tempo. Deixar-me só ficar, sem ser o abraço das lágrimas daquela que me pôs no mundo, sem ser os minutos ligeiros de quem traz o cansaço no sangue, sem ser a sombra que acompanha quem comanda o barco contra a tempestade para esconder lágrimas que não controla, sem ser ninguém. Pendurar o coração num prego que alguém pregou à força dum martelo cruel na nossa vida. Talvez deus.