quarta-feira, 30 de novembro de 2016


O que está perdido, tempo nenhum devolve. O que está perdido não se recupera. Uma mesma curva não se curva de forma igual nem por duas vezes, à segunda vez já a conhecemos.
O meu olhar de hoje não olha como olhava ontem. O meu olhar de hoje viu coisas que ontem ainda não tinha visto.
Hoje não sou igual a ontem, mas sou a mesma. Continuo a mesma - a faltar a umas coisas para não perder as que realmente me fazem falta. Hoje, como ontem, como amanhã, são sempre frutos de escolhas, que são prioridades, as nossas prioridades.
O tempo não se perde, mas perdem-se para sempre as coisas que deixámos de fazer, trocadas por outras, que feitas nesse mesmo tempo, não se perderam.
O que deixámos de fazer, está perdido, tempo nenhum devolve. Fazer ontem não é o mesmo que fazer hoje. Fazer hoje e não ontem é uma escolha, já não podemos fazer hoje, da mesma maneira, o que poderíamos ter feito ontem. O nosso olhar não é o mesmo, já viu que ontem a escolha foi não fazer, foi trocar por fazer uma outra coisa, que era a nossa prioridade. Preterimos, deixamos cair, perdemos o que escolhemos não fazer, mesmo que o façamos hoje.
Hoje já não seria como ontem, amanhã já não será como hoje
No entanto nada muda. Tudo na mesma, ainda que nada igual.

terça-feira, 29 de novembro de 2016

[ foto @happydays796]

Há pessoas que podem gostar de mim,
Mesmo que eu não seja fácil de gostar.
Há pessoas que me sabem dar colo,
Mesmo que não me entendam as tristezas.
Há pessoas que me acham doce,
Mesmo que vítimas das minhas agrestes defesas.
Há pessoas que me encontram sombria,
Mesmo que eu só tenha cor para dar.
Há pessoas que me dizem complexa,
Mesmo que não me chamem complicada.
Há pessoas que me vêem um diabinho,
Mesmo que outras só me vejam sossegadinha.
Há pessoas que me vêem bonita,
Mesmo sendo uma mulher que ninguém nota.
Há pessoas que me chamam,
Mesmo que não me saibam dizer.
Há pessoas para tudo...
Eu sou só uma,
Sou só eu,
mesmo com muita gente dentro.
Mas não sou para qualquer um que me olhe,
E não quero um qualquer que me veja,
Só quero gente habitada,
Desabituada de vazio.

... There's no other way.

segunda-feira, 28 de novembro de 2016

...mood of the day...
...ser surpreendente
(mas só em pensamento, pronto... mas em pensamento 
há pessoas hoje que já podem ter ficado sem dentinhos...)
eheheh

domingo, 27 de novembro de 2016

[foto @endlessfaces]

... Há dias em que se acorda e não se quer nada. Quando não se quer nada tudo está bem - se não bem, muito melhor. Nem me interessa se o espelho é amigo ou apenas hipócrita... Sei que hoje gosto dos olhos ainda que não do olhar, gosto de mim ainda que nem sempre me tenha em boa conta. Apetece-me sair de mim ainda que saiba que isso é o que melhor me define por dentro, que isso sou essencialmente eu, e que gosto desse eu, meio estranho, sempre a caminho da saída de si mesmo, ou o desejo de. Hoje saio de casa e despeço-me do passado que não chegou a ser, passeio pelo presente sem vontade de futuro e virando costas ao que pode ser que tivesse sido... Hoje é hoje, e hoje não quero nada.

Sleep tight don't let the bed bugs bite. - repetia isto, como lho haviam repetido em criança, do coração, às filhas, como se assim repetido nenhum mal lhes chegasse, nada lhes inquietasse a inocência dos sonhos. Repetia-o como uma oração a um Deus maior, aquele que afasta os primeiros medos dos corações puros. Os medos dos monstros que um dia viriam a ser homens como os outros, e medo de ter medo de não saber aprender a fazer como os outros, como dantes não sabiam apertar os atacadores, medo que não as amem - medo de um dia deixarem de ouvir a frase que as fazia sorrir um sono descansado, na sensação tranquila de que alguém as protegia, enquanto lhes velava os sonhos e os sonos.
Um dia as meninas cresceram aos olhos e, talvez por acreditar nisso, deixou de o dizer, mas os medos não se afugentaram, só já não viviam nessa sensação de que alguém as protegia. Os monstros viraram homens incompreensíveis, que se repetiam como um só sempre diferente; e os apertares de outros  atacadores eram tarefas dignas de Hércules,  como segurar as pontas do sobreviver ao mundo, dia após dia. Aprenderam a viver com a sensação de não serem amadas, o que interessava era chegarem ao dia seguinte inteiras. E chegavam. Inteiras, só não completas. Alguém tinha deixado de lhes velar os sonhos porque já não eram de meninas os medos, que continuavam a ser, debaixo das noites por dormir e apesar dos dias por viver. Cada menina precisa de continuar a ouvir uma frase que faça sorrir um sono descansado.
Sleep tight don't let the bed bugs bite.

sábado, 26 de novembro de 2016



[foto @annadecriscio]

Às vezes o tempo escorre melhor pelos dedos quando fechamos os olhos, quando nos deixamos nas mãos do sono sem sonhos. Deixamo-nos dormir como quem entrega o tempo ao tempo. A vida entregue à fé num deus em que não acreditamos, mas dormimos como quem reza. Assim estou eu, entre um sono e outro, entre a ronha e o acordar mentido. Entre o querer dormir e o deixar o tempo adormecer.

sexta-feira, 25 de novembro de 2016





Toca-me como se fosse tua
Toca-me como se te fizesses meu
Toca-me como se fosse tua rainha e tua serva
Toca-me como se fosses meu senhor e meu escravo
Toca-me como se me conhecesses
Toca-me como se me quisesses todos os dias desde sempre
Toca-me como se nada mais importasse
Toca-me como se os teus dedos fossem só alma
Olha, olha-me,
olha-me, como se nunca me pudesses tocar.
Toco-te?







Não sou pessoa de coisas mornas e semi-aquecidas, asfixiam-me, deixam-ne sem ar, como se respirar fosse apenas um inspirar-expirar consciente de obrigação de sobrevivência. Talvez haja quem o faça por instinto, esse mesmo: de sobrevivência, mas nisto tão pouco selvagem, intocado, irracional. Tudo demasiado pensado, arrumado, alinhadinho. Previsível de hora a hora, hábito dia-a-dia, costume de vida que se acomodou para não incomodar. Vida que se esqueceu de viver. Que se esqueceu de experimentar asas. Que se esqueceu que cair faz parte do querer voar. Morno só entre o descanso do quente e a vontade de incendiar, entre o calor que nos respira e o chão frio da queda aspirante a voo. Caímos, mas o chão ampara-nos a subida, em que despiremos o frio que não nos habita a pele. Mais tarde ou mais cedo.

quinta-feira, 24 de novembro de 2016




[foto @projetoamoramora]

escrevo-te

pelo corpo sinto um arrepio de vertigem que me enche o coração de ausência pavor e saudade
teu rosto é semelhante à noite
a espantosa noite de teu rosto!
(...)

Al Berto



O meu rosto não é de sol, é todo feito de noite,
do negro do céu que se afunda nos meus olhos,
das estrelas que furam a escuridão
quando poisam nos amores de cada dia,
no sorriso que me ilumina o rosto
quando a doçura desperta
é triste só se o quiserem ver triste
é frio só se não se souberem agasalhar
na ternura melancólica duma noite
onde pode haver paz e explosão
no mesmo instante,
na mesma noite
no mesmo olhar
no mesmo sorriso.
num só toque

Quanto ao depois... O depois podia ser num alpendre rematado de horizonte por todos os lados, banhado de um pôr do sol quente sobre a terra dourada. Duas mãos agarradas e as outras duas a entreterem a vida: a ler um livro, a fumar um cigarro, a folhear um jornal. A vida dos dias entrelaçada nos dias da vida por aquelas mãos dadas. Depois do sol radiante se esconder para dormir troca-se o alpendre pela plateia da lareira. As mesmas mãos, outro fogo, o mesmo horizonte a bater dentro do peito, outras vontades. Depois? Depois, o mesmo sem ser igual, as mesmas mãos em dias sempre diferentes.

Uma vez disseram-me que só se perde o que se quer, o que se deixa. Talvez seja verdade para algumas pessoas, para mim não me parece ser verdade, infelizmente.

quarta-feira, 23 de novembro de 2016


...não, às vezes é só porque se sente frio, muito frio...
... e não nos queremos constipar.
...às vezes a vida sabe-me tanto a tão pouco.
Como uma mistura mal misturada
de sonho por sonhar, vida por viver
com sonho por viver e vida por sonhar.
A realidade é tão curta e tão rasteira, 
e, no entanto, é nela que nos afundamos sem fundo e dela nos encurtamos as vistas,
 porque não vemos - ou para não vermos. 
Não vermos tudo o que caberia sem ocupar espaço.


terça-feira, 22 de novembro de 2016


"Não sou boa com números. Com frases-feitas. E com morais de história. Gosto do que me tira o fôlego. Venero o improvável. Almejo o quase impossível. Meu coração é livre, mesmo amando tanto. Tenho um ritmo que me complica. Uma vontade que não passa. Uma palavra que nunca dorme. Quer um bom desafio? Experimente gostar de mim. Não sou fácil. Não colecciono inimigos. Quase nunca estou pra ninguém. Mudo de humor conforme a lua. Me irrito fácil. Me desinteresso à toa. Tenho o desassossego dentro da bolsa. E um par de asas que nunca deixo. Às vezes, quando é tarde da noite, eu viajo. E - sem saber - busco respostas que não encontro aqui. Ontem, eu perdi um sonho. E acordei chorando, logo eu que adoro sorrir... Mas não tem nada, não. Bonito mesmo é essa coisa da vida: um dia, quando menos se espera, a gente se supera. E chega mais perto de ser quem - na verdade - a gente é."

Fernanda Mello
(apanhado aqui)

[...se eu (me) soubesse (d)escrever assim podia ter sido eu a escrever este texto quase todo - quase, quase...] 


Há dias em que se acorda com estranhos apetites. Hoje acordei com uma vontade imensa de ser obediente, mais: de ser bem mandada, com prazer e verdadeira convicção. Dizerem-me: desaparece daqui... e eu, imediatamente, desapareço para um qualquer cenário paradisíaco com um livro e uma bebida fresca ao lado, com um sol meigo a passear-me pelo corpo. Que me digam para ir dar uma volta, para eu logo começar a volta ao mundo (só) para os fazer felizes; que me aconselhem a ir ver se estão na esquina onde não estão, que arranco logo, porque assim pode ser que esteja lá alguém interessante; que esqueça...e de repente já não saber mais o que deveria esquecer... Eu de tão bem mandada, não só obedeço, como o faço com verdadeira convicção, de corpo e alma, e assim todos ficam contentes, não é? Eu pelo menos falo por mim e por estes estranhos apetites para que hoje acordei.
Bem vistas as coisas... Além de obedientemente bem mandada (e uma bem mandada é sempre bom) ainda sou uma benemérita.

segunda-feira, 21 de novembro de 2016






Às vezes parece que o destino se perde nos caminhos, outras que os caminhos perdem destino. Há uma qualquer parte de mim que partiu, que saiu de mim para chegar a alguém. Mas não chegou, não cheguei, não chego. Acho que foi no caminho que o destino se perdeu, fugiu, mudou de sítio, é apenas uma imagem esbatida das cores com que sobressaiu no postal que me fez começar a viagem. Com medo e com vontade: com medo daquela vontade e com vontade de ter medo, mas sabendo onde queria chegar, só não sei, agora, desse destino. Foi no caminho que o destino se perdeu, mas o caminho ainda caminha rumo aquelas cores, ainda procura aquela vivacidade, aquele arrebatamento - aquele destino. O caminho não está perdido, só o destino. E eu.... Eu persigo uma imagem habitante de morada desconhecida, procuro uma porta que mudou de casa.

domingo, 20 de novembro de 2016

[foto @bnwsouls]

Viu o café à beira da estrada. Apeteceu-lhe parar, beber um café para adormecer pensamentos demasiado acordados. Café central - leu e nem se deu conta do sorriso esboçado que lhe saiu da gaveta, sem ter dado conta de a abrir. Essa gaveta, onde guardava pedaços de tempo, como papéis rascunhados de silêncios que se foram acumulando por dizer. "Não comeces, assim estragas tudo" ouviu algumas vezes pela vida dentro e, a cada vez, a gaveta ia aumentando o fundo. Porque, pareciam nunca entender, assim tudo se ia inevitavelmente estragando sem, no entanto, vez alguma estragar o momento - aquele que, naquele preciso instante, encurtava futuras eternidades. Não falava para estragar, mas para não ficar estragado, a apodrecer por dentro das teias do que não se entende, não se pede e não se esclarece. Para não estragar. Encostou. Desligou o carro. Ficou a ver os pingos de chuva a fazerem a sua descida radical pelo vidro, nunca se assustavam, raramente caíam, apenas deslizavam, como se o destino de alguns não seja cair, tropeçar de engano, de falha, mas de deslizar até ao chão, sem embate, sem mossa, sem resistência que resulte em frustração teimosa. Em medo a crédito. Deixam-se, apenas, ser o que são, nunca caindo, só descaindo, resvalando chuva fora, vida adentro. Resolveu, no meio de tanto pensamento infantil, ganhar coragem e servir de chão a uns quantos pingos com esgares bélicos, tal a força com que, de repente, pareciam querer bater. Entrou, três cabeças se voltaram, a quarta ressuscitou do mergulho por baixo do balcão... Pareciam pouco habituadas a ver mulher por ali, ou talvez só a ela, porque não era de cá, ou melhor, de lá. Mas, estivesse onde estivesse, ela sempre lhe parecia não ser de lá... Ou de cá. Sorriu, um sorriso não encorajador de desconhecidos, e pediu um café. Pagou, pegou na chávena e levou para uma mesa gasta pelo descuido, acompanhada de uma cadeira onde pouca tranquilidade se parecia ter alguma vez sentado. Dali via a chuva, ouvi-a sussurrar-lhe aos ouvidos como música que embala quem quer acordar uma qualquer vida que perdeu nalgum sítio, e que já não procura. Abriu o pacote de açúcar, não sem antes ler a frase que lhe calhou em rifa, à moda de fortune cookie de trazer por casa, mas sem futuro ou fortuna... Riu-se. Despejou o açúcar e olhou o café em espiral enquanto o mexia. Olhou o remoinho da vida, pensou que lhe fazia falta - tanta, mas tanta - olhar no fundo duns olhos e ver uma alma a mexer o açúcar do tempo. Misturá-los, bebê-los juntos num olhar que não se troca, mas em que se mergulha. Mergulho de profundidade. Talvez daqueles de que não se sobrevive inteiro.
Bebeu o café que lhe pareceu amargo. Não chegou a fumar o cigarro, havia de o fumar no resto do caminho, com música a iluminar o silêncio. Levantou-se, correu de volta para o carro, tentando passar entre os pingos da chuva. Tirou o pacote vazio de açúcar do bolso. "Bom dia a quem bateu com a cabeça na parede". Há sempre cabeça para mais uma (ou falta dela, e nos dias em que lhe doía menos tinha a certeza que era coisa que não queria ganhar). Abanou a cabeça e riu-se. Continuou.

(sem título)

...o depois de ir e eu ainda ficar para banho e caminho tão mais curto. O ficar outra vez, o despedir, o deixar ir - a sina da minha existência. Custa, dói sempre, o tempo entre os dedos das mãos sem lhes dar o que fazer, sem fazer o que têm para dar.
Chove e eu gosto de ver chover, sentada nas escadas da porta, abrigadas da chuva mas com a vista para os pingos que caem com vontade de chão. E eu aqui, com vontade não sei de quê sem me chover coisa nenhuma, desabrigada de tudo. 

sábado, 19 de novembro de 2016

Na ronha, com a janela de frente, por onde entra o dia como um intruso que me ronda a janela, escoltado por um pequeno curioso, a especializar-se em voos picados, que não precisa de convite. E eu aqui, no quente dos lençóis dormidos, a tentar não acordar por inteiro. A pensar como é estranha alguma não estranheza das coisas, e como estranho algumas que nada deveriam ter de estranho. As vezes não sei o que pensar das coisas, que nomes lhes dar, talvez precisasse de ler os rótulos, de os ver, eu que detesto  rótulos, que gosto de abrir, ver, saborear, cheirar e tocar para saber o que é - ou inventá-lo melhor - vestir-lhe um nome índio que nos diz de quem veste, que tem uma razão e uma história. Que tem um nome que fala. Depois há coisas sem nome, talvez sejam mudas de história e de coração. Precisam dum rótulo.

sexta-feira, 18 de novembro de 2016


Tenho saudades de tantas coisas que já não sei se são saudades ou só avidez provocada por miragens de vidas que nunca cheguei a ter. Dizem que as saudades do que não chegou a ser são as que mais nos doem, talvez porque à falta se junte a noção de termos podido fazer mais, ou alguma coisa, ou algo que ninguém sabe o quê, mas que virasse os dias e entornasse a miragem vida adentro. Ou talvez seja aquela sensação de incompletude, de amputação, de dor fantasma de algo que só imaginámos ter, mas que nos dói perdê-la como se a tivéssemos perdido por excesso de uso. Por ter usado e abusado das ganas de viver, por ter vivido com ganas e rasgado a vida com coragem, audácia e chegado mesmo a roçar a plenitude que alma e corpo nos concedem. Se calhar talvez haja, apenas e só, um excesso de sonhos, uma avidez esfomeada que não tem o que mate a fome. Talvez eu seja dessas criaturas sempre insatisfeitas, sempre à procura das coisas grandes nas mais pequenas coisas, missão que em si não passa de miragem. Talvez a insatisfação seja grande porque se prende com coisas pequenas, tão pequenas e fáceis que se torna difícil a pontaria afinada para lhes acertar e caçar-me o coração. Quisera eu muitas, e grandes, coisas e qualquer um conseguiria acertar nalguma coisa que me contentasse... assim é difícil. Não é para qualquer um. Mas eu também não sou.

quinta-feira, 17 de novembro de 2016


...porque amar talvez seja uma forma de luta, 
mas nunca uma arma - e não se ganhando batalhas amando, 
deve ser sem dúvida a melhor forma de as perder... 
...Parece-me.
Porque há dias em que as letras teimam em não sair à rua vestidas de palavras, de sentidos, de imagens. Ainda que nos apeteça dizer coisas bem agasalhadas, que aqueçam e confortem, que nos façam agradecer com um sorriso a sensação da ponta do nariz gelada, que cheira as primeiras lareiras no ar, em oposição ao quente que aconchega o corpo debaixo dos camisolões e as mãos fofas de calor dentro dos bolsos. Nesses dias calamo-nos, olhamos o horizonte - ou imaginamo-lo - vamos buscar duas canecas de algo que aqueça por dentro e esperamos que venha alguém pegar na caneca que, sendo nossa, não é para nós bebermos. Esperamos no silêncio, de nariz enfiado no líquido ainda fumegante, que o calor nos chegue. Que chegue.

quarta-feira, 16 de novembro de 2016


-Sou teu
-Não és meu, mas vou sempre tentar que sejas, e é nesse tentar que mora a paixão.

[esse lugar que deve ser habitado pelos dois, onde as garantias não entram, onde a paz não ganha bolor, onde a inquietação é a música de fundo que nos faz dançar. Onde a incerteza é certa, onde a certeza de nunca se sentir nosso o outro - não além daquele limiar da certeza que um beijo nos dá, que um toque nos diz, que um olhar nos pode jurar e fazer acreditar - é tão incerta que se dissipa no intervalo de tempo que se estica entre um beijo e outro. E essa espera, transformada em medo de não haver próximo, rói-nos todo o tempo. Se chega o beijo, as migalhas de tempo roído sabem a flocos de nuvem doce.]

terça-feira, 15 de novembro de 2016




Houve qualquer coisa que despertaste em mim que não soubeste cuidar, que não quiseste guardar. Que perdeste, que quiseste perder. De que te perdeste.
Há uma parte qualquer de mim que não é minha - que é o lugar de quem me tem - que é das pequenas coisas que me encantam, que se fazem donas dos meus dias bons e senhoras do meu jeito traquina, que me roubam momentos em troca de eternidades. Coisas pequenas, sem jeito, talvez, mas que dão um jeito ao dia. Brincadeiras, palavras agridoces, tontices, gargalhadas que nunca andam longe, presenças que se sentem perto, que nos fazem sentir perto, que nos tocam sem aflorar a pele, mas que não nos desabitam o sorriso. Não nos largam a disposição, o céu azul do olhar. Margaridas apanhadas à beira dos começos de dia, entregues na vontade de serem recebidas, e sentidas - de serem o meu amanhecer em sol de pétalas. Vontade de morar nos momentos que me fazem o dia e habitar-me a vontade. Coisas que se fazem com desejo de chegar ao outro, de chegar a mim, de fazer de ti aquela parte de mim que guardo sob reserva para quem me quiser, e conseguir ter. Quem tiver ganas de fazer lugar, de ser lugar - que possa ser o meu lugar e eu o dele. Um sítio onde nos encontramos e nos reconhecemos no toque, no sorriso, no olhar derramado sobre o essencial. Não onde nos esbarramos para seguir desconhecidos, mornos e amorfos, em que o passado não interessa, o presente é o que for e o futuro não existe. Onde o tempo se conta em horas e dias e tudo tem calendários. Não, um sítio onde se aceita o passado, se goza o presente e se vai fazendo, a cada dia, o futuro. Onde o tempo é um presente que não envelhece, que não se sente passar quando me tocas e não se mexe quando te sinto longe.



[foto @martinrakphoto]

Há dias, como hoje, em que eu deitaria tudo a perder - tudo que é nada, ou um nada que é tudo -, pela vontade de tudo que ninguém sabe nada do que é. E não ganharia nada, absolutamente nada, se do tudo que quero nada sei. Para perder é preciso sentir a perda, sentir uma falta cheia de vazio no sítio onde tínhamos o que nos guardava. Há dias, como hoje, em que não sei o que sentir, em que o horizonte é um borrão sem corpo e o fogo uma miragem em esbatidas aguarelas desenhados por um louco sem destino guardado. Não sinto as garras da vida a esgaçarem-me a pele de dor ou de prazer. Não estou bem mas não estou mal, sabendo miseravelmente que podia estar pior. Como uma espécie de névoa que me envolve a alma, que a protege e a distancia de tudo. Uma coisa sem nervo e sem espinha. Na espessura da indolência nem distingo se me estendem a mão, se me acenam uma vontade ou esboçam um adeus. E não me movo. Deixo o tempo correr pelo corpo como a água do banho que se esquece de me tocar. Nada me toca, como se estivesse meia morta, e isso mata-me. É isso que me mata mais fundo, não chegar à tona de mim, nem esboçar um aceno dessa vontade, ainda que me grite, paralisada, enclausurada por dentro.

segunda-feira, 14 de novembro de 2016


Segunda-feira, Segunda-feira é hoje, 
Carlos, Zé Carlos... Com'équié?? Hummm??
[no caso original é Carlos Drummond de Andrade, 
mas no post é Zé Carlos mesmo... Bom dia ;) ]

sábado, 12 de novembro de 2016


Se à tua vida, como a uma cadeira, faltam pernas para se manter de pé, enche balões coloridos de sonhos vindos do peito profundo e deixa-os sustentar a verticalidade dos dias... substituir o sol e desfazer-se na boca o sabor do algodão doce duma infância que não tiveste, deixa-os ser o sorriso que te esqueceste de desenhar hoje e a gargalhada que perdeste pela meia dor que lembraste de ontem. Brinca a sonhar, e sonha brincar para sempre. Sonha, brinca e sente tudo - sente-te em tudo. Só não te sentes. Os sonhos não suportam quem na vida se senta. Perdem a cor, e é a intensidade dessa inquietude viva, que não os deixa poisar, e nos levanta. Ou não nos deixa cair.

sexta-feira, 11 de novembro de 2016



(...)
Dance me very tenderly and dance me very long
We're both of us beneath our love, we're both of us above
Dance me to the end of love

(...)

Leonard Cohen

Das coisas que ficam para sempre.
Daquelas que agradecemos que alguém tenha deixado que fiquem...
[foto @westaywild]
Há dias em que acordo uma pessoa lisa, ou quase. Lisa como quando se pede água lisa, sem froufrous, piquinhos ou complicações. Daquelas que não são rascunho que se reescrevem sucessivamente e incessantemente, sempre à procura da última versão de si mesmas, a melhor, a certamente incerta de ser a última sobre qualquer assunto, em qualquer dia que seja, ou mesmo noite - ou sobretudo nas noites, onde nem todas as sombras são escuridão, onde nem toda a luz sabe iluminar a calor. Há dias em que me levanto e sinto as coisas como música de fundo, a acompanhar a vida, lá quase no horizonte que não é de tocar, onde toca essa música que embala, mas não abala nem ocupa o palco, muito menos quer saber de holofotes. Alturas em que não preciso das letras para largar o lastro que não deixa o dia levantar, ou eu levantar-me inteira do sono que me descansa de mim, como se me desaparecesse entre os segundos que não sinto passar entre os ponteiros do relógio, entre uma e outra frase que não nos atinge nem de raspão. Um estado quase dormente, um conforto quase indolente. Horas estranhamente prosaicas em que os pensamentos não andam pela casa de saltos altos, a seduzirem-nos o tempo como um encantador de serpentes, que depois mordem nos além da pele. Pensamentos que nem batem à porta por não quererem sequer entrar no dia pela porta da frente, rondam o perímetro com uma distância de segurança, tão segura, que me deixam a falar sobre nada.

quinta-feira, 10 de novembro de 2016

O Trump ganhou, mas pelo menos serviu para o mundo abrir meia pestana à realidade
Hoje o dia está cinzento, mas pelo menos não chove.
Ele partiu uma perna, mas pelo menos não partiu as duas.
Ele não gosta do que faz, mas pelo menos tem trabalho
Ele não está apaixonado, mas pelo menos não está sozinho.
Ele não a amou, mas pelo menos fê-la sentir bonita.
Pelo menos há sempre um lado reverso, mesmo que não seja o inverso do estar mal, que seria o estar bem, pelo menos. Pelo menos há o menos mal, o que se aproveita, o que resta, o que se salva da desgraça completa e inteira. Pelo menos são os restos mortais do que não foi, mas devia ter sido, queria ter sido, só não chegou. Pelo menos é pela teoria  do menos, ou do mais-ou-menos, do assim-assim apresentavelzinho, do aceitável menos mau, do podia ser melhor mas - pelo menos - não ser pior já é uma bênção... do fatalmente arrasador: não é o que eu queria, mas é o que há!
Pelo amor de deus... Mais! Muito mais!
Querer mais pelo mais de se querer o que se quer, que se almeja, que se deseja, que se sonha em dias bons para ser farol nos dias maus. Querer, querer mais que o pelo menos: querer o que não tem de nos encolher para servir, de encurtar o sonho para não termos de cortar com a realidade, de ser fingido porque não há papel passado para a felicidade (embora tantos representem esse papel)... Há ser feliz. Ou não. Pelo menos... pelo menos não chegar não ser infeliz.
Pelo menos que o pelo menos não chegue.
Pelo menos isso.
A mim, pelo menos, não chega. E a ti?

quarta-feira, 9 de novembro de 2016

Gostei do "minha", do querer "sentir-te minha",
não porque o oiça como posse, mas porque me é doce a sensação de pertença.
Como uma casa a que se chega, a que chamamos nossa, não por plena propriedade de direito, mas porque pertencemos àquela casa. Algo nas suas fundações nos suporta, algo da sua luz nos conforta, o cheiro é a lar, a conforto que se sente mal se passa a porta. Como se parte de nós estivesse ali e nós fizéssemos pleno sentido ali. Só ali.
É ter em mim algo teu, que te faz meu;
 é teres em ti algo meu, que me faz tua. 
Como o coração fora do peito a bater ao nosso ritmo noutro peito.
Só nesta geografia fora do lugar faz sentido - se faz o sentido.
Em que o lugar não é um sítio mas um querer bem.
Um bem-me-quer. 
Meu, de querer-te bem. Teu, de bem me quereres.
...hummmm.
Pois, conheço alguém com uns traços parecidos...
... e só aqui entre nós, eu aconselharia primeiro a fazerem-lhe a vontade e só depois rir...
...é que senão pode não correr tão bem, sei lá...
A ordem dos factores não é arbitrária, não...
e o bipolar pode ter raízes nos outros polares, aqueles grandes com'ócaraças e que quando se chateiam não queremos nem ver as costas... os ursos, pois.


terça-feira, 8 de novembro de 2016


O que me prende o olhar é o encanto, aquele que o olhar vê em qualquer canto, que se aninha num qualquer recanto da alma por ocupar. Tem qualquer coisa de mágico, qualquer coisa de indecifrável, que nos deixa suspensos num olhar que lançamos, que nos prende por dentro a qualquer coisa de fora que nos fala, que nos falta, mas que tem algo de nosso... Que se sente nosso fora de nós. Território por reclamar... Uma paisagem, a inclinação da luz entre as nuvens, um sorriso, as cores escandalosas de um por-do-sol, uma música que parece feita de nós, para nós, um poema que nos revela e nos desfaz, reduzidos a grãos de areia que caberiam no bolso dum coração generoso, ao lado das estrelas cadentes que guardámos porque caíram para serem apanhadas pela fotografia do nosso sorriso. O encanto tem nós cegos feitos no nosso código genético, faz os nós e desfaz os nós com a mesma displicência ingénua de uma criança num espectáculo de magia. O encanto não está nas coisas, está no olhar que sobre elas poisa, que navega sonhos em oceanos secos e revoltos. Quando o olhar despe o calor do sentir, vê que a mira desafinou, que a música é um ruído transfigurado, que todos os dias o sol se põe, que as estrelas caem num vazio onde ninguém tem bolsos - percebe que a magia é uma ilusão. E a ilusão é apenas desilusão. São coincidentes em tempo e em modo, gémeos do mesmo engano. A desilusão é a mera constatação da ilusão, nascem no mesmo instante ao descodificar a prosaica realidade de que a magia somos nós num dia bom. É o nosso olhar cheio de sorrisos luminosos a procurar-se num recanto sombrio faminto de luz, onde se possa aninhar e encantar. Depois é o desencanto em qualquer canto, todas as musicas desafinadas, a alma cheia de nós... E o olhar, teimoso, a vaguear  entre a magia da poesia e as pedras que fazem tropeçar um mau pedaço dum bom caminho 

e na palma da tua mão
busco ternura
sem contar meses,
anos, dias,
sem saber dizer se já te chorei
por inteiro
o suficiente
para não voltar
a perder-te

Vasco Gato

[nunca há garantias. por muito que se chore ou não chore, faça ou não faça, nunca há garantias. podemos , e devemos, tentar manter o que temos, alimentá-lo, melhorá-lo, trabalhar para isso, incendiar todos os dias um momento que seja... mas quem pensa ter alguém garantido já o perdeu, pode começar a chorar.]
... Assim, a meio caminho do inferno. 
Onde é que já se viu?
Depois de tampas e parvoíces várias - como tentar ser resistível ao irresistível, tentar responder à altura das parvoíces mas ficar-se pelo meio riso encolhido, irritar-se com certas aparentes imunidades a charminhos vários, largamente testados e comprovados em cobaias facilmente impressionáveis - vai que a caminho do inferno parou no arrozal... Agora é inferno por todos os lados... E margaridas paradisíacas também... Às vezes até arroz, desde que não seja eu a cozinhar...

segunda-feira, 7 de novembro de 2016



"gosto de pessoas que dançam. daquelas que se abanam ao primeiro ritmo que lhes salta ao ouvido. que é diferente das pessoas que vão dançar. as pessoas que dançam fazem-no a toda a hora, no carro no meio do trânsito, no balcão da cozinha a fazer o jantar, apenas no corredor enquanto se vestem, na janela durante o cigarro. ou, ainda melhor, enquanto namoram a caminho do quarto. (...) 

as pessoas que dançam não sabem como o fazem. não tem coreografia ou técnica. sai-lhes, solto, em forma inconsciente de movimento. às vezes ficam sem jeito, no meio da rua, com o vizinho a olhar. mas que se lixe, sabe tão bem, dançar no carro, na rua, no meio das vinhas, em cima do muro. ou tirar os sapatos e dançar na terra, na praia, na relva fresca.(...) gosto especialmente de ver alguém a dançar sem saber que estou ali (ou mesmo sabendo, puramente a ignorar que estou), mas no maior gozo de quem se sabe bonita apenas por ser assim, solta. 

atraem-me em particular as pessoas que sorriem enquanto dançam. que puramente estão a divertir-se, naquele bocado de corpo que mexe. ou mais bonito, quando nos fitam e se riem primeiro no olhar, e só depois no rosto, enquanto se aproximam. há pessoas que dançam assim o dia todo, estejam longe ou perto, visíveis ou afastadas. basta uma mensagem, um beijo, uma telefonema e sente-se o braço a puxar, a embalar no ritmo. a melhor dança? é essa, a dois. noite dentro entre jantar, um copo demorado, muitos beijos longos e amores prometidos. ou depois, no fim, a dança dos meus dedos nas tuas costas, lentos, até adormeceres, também com um sorriso, solto."

Momentos tirados daqui... e o que eu gosto destes momentos...

Hoje de manhã a minha pequenitates pede... "mamã põe aquela música em que começas sempre a dançar, põe alto, até à escola..." E assim foi, a mãe pôs e cantou e dançou até à escola, percebendo um ou dois sorrisos fugidios de alguns rostos que nos apanhavam em tamanhas tontices boas logo pela manhã... realmente a vida sem música não faria sentido. Adoro dançar, acho que é uma das duas maneiras de se libertar o corpo, soltar a alma, fechar as janelas ao mundo. Dançar de olhos fechados, de sorriso rasgado no ritmo da música que faz o corpo ondular, abanar, vibrar ao som que parece só ser ouvido por nós. Há algo que renasce, que floresce, que acorda. Que nos lembra que há vida, mesmo na maior escuridão, se houver uma música que nos acorde o acorde da vontade - da vontade de ser ritmo e movimento e um sorriso que dança. Mesmo que o mundo nos paralise, ou apesar de.

[E a caminho do trabalho foi esta, que também não me deixa quieta e que combina tanto com o caminho... tanto. E com alguns dias também, como hoje.  Lift me up lift me up... higher and higher...]

domingo, 6 de novembro de 2016



Dia de passeio, de ver animais de porte, cavalos bonitos. Dia de comprar uma bóina e gostar de a usar. Dia de sol e cheiros diversos, alguns adversos. Dia de me lembrar que me disseram que égua é um animal submisso, e de continuar sem perceber, ou ver, isso. Dia de apreciar o porte que monta a beleza, a força e a majestade. Dia de conversas que põem sorrisos ao sol tentando soprar nuvens altas, mesmo que na vida chovam picaretas. Dia de fotos de coisas que gosto, ainda que a foto que tinha na cabeça e queria, o telefone não a tenha conseguido apanhar... E de fotos para recordar dias bons com pessoas que gosto. Dia a repetir. De bóina mesmo.

sábado, 5 de novembro de 2016




Há dias que não parecendo vazios por fora parecem tão vazios por dentro. Onde o tempo nada às voltas dentro dum aquário vazio sem se cansar. Agitam-se as águas, mas o tempo não se afoga, faz piscinas sem fim sem destino de chegar. Sem dia de onde partir. Sem noite onde aportar. Outros dias há em que um só minuto dá norte, uma só palavra inunda o dia. Há palavras que parecendo nada por fora são tudo por dentro. Norte, partida e destino.
Há dias em que a única navegação da alma é coser palavras a pensamentos e cortar, com os dentes do destino desacontecido, a linha do tempo que os juntou.

sexta-feira, 4 de novembro de 2016

[foto @txabe_ss]

"De vez em quando deus me tira a poesia.
 Olho pedra, vejo pedra mesmo."
Adélia Prado

De vez em quando abro os olhos 
 e não acordo
De vez em quando olho
e não vejo
De vez em quando falo
e as palavras são só letras mudas
De vez em quando respiro
e não inspiro
De vez em quando o dia nasce
e não amanhece
De vez em quando a margarida fecha por falta de luz, 
mesmo que esteja cheia de cor aos olhos dos outros. 

Há dias em que a cor me foge do olhar para dentro do negro dos meus olhos. Fica por lá, navega, reduz-se, paira, chega a afogar-se sem se dar conta dela. Por isso, dentro dos meus olhos negros, de vez em quando, vejo a vida a duas dimensões: sem profundidade. Sem poesia. Como quando a vida fica em vácuo.
Hoje uma pedra é uma pedra, mesmo que amanhã não possa ser outra coisa que não a certeza - absolutissima e mais que definitiva- de ser um coração à espera de acordar, de ver, de inspirar, de amanhecer.
Hoje a pedra enterrou a poesia. Ninguém sabe porquê.




Às vezes dizemos que estamos a fazer tempo, que fazemos tempo, como se o tempo fosse produto de vontade, força ou engenho. 
O tempo é coisa escassa, mas que nasce a cada momento. E morre também, ainda que seja feito de infinito. O tempo é coisa invisível, maleável e por de mais relativa, mas de medidas absolutamente rígidas. E só cabe onde quer, mesmo que alguns gostem de o chamar elástico.
O tempo cai quando não estamos a olhar e desliza quando estamos à espera. Se olharmos de frente para ele, não se mexe, e se não damos por ele é porque fugiu. É coisa que se agarra tanto como o vento... podemos enfunar velas e aproveitar, ou podemos levar com os despojos, que arrasta com violência, se não tivermos cuidado.
O tempo é o que dizem que cura tudo. Eu só vejo que esbate a cor nas fotografias.
O tempo é aquele segundo por que perdemos a corrida, e aquele segundo que deslizando teima em não cair. Nem que o abanemos.

quinta-feira, 3 de novembro de 2016


Gosto quando damos pela vida noutras mãos
e não é aflição que mata, nem paz que morre.
Gosto quando dessas mãos
deslizam palavras em gestos com gosto de alma.
Paladar de pele pelo avesso e direito da alma,
por direito.
Gosto quando o desejo passa do olhar
para as mãos famintas,
Gosto quando a vontade lambe a pele.
Gosto quando os beijos sabem a música
e os sussurros mordiscam prazeres
escondidos num sorriso aberto,
guardado numas mãos que nos entregam.
Gosto.
Não gosto quando as mãos nos fugirem
foge às nossas mãos.
Não gosto.

quarta-feira, 2 de novembro de 2016


[foto @onyximtimates]

É o defeito dos dias bons, vir contente e vaidoso no meio dos desgraçados, dos desgrenhados e dos apenas desengraçados - dos que não são bons nem maus, são ressacas dos dias bons. Aparentados só por proximidade, deixam um certo amargo de boca e cinzenta a disposição póstuma. É o ar que não enche o pulmão, é o sol que não passa o vidro, é o sorriso que teima em não rasgar e ficar pelo esgaçar do momento que não chega a chegar inteiro. É ter tudo à disposição mas nada servir ao coração. É fazer contas à vida e faltar sempre a prova dos nove, dos noves-fora-nada. E não foi nada. Não foi. Nada.
[foto: @cuddleupnow]

"Uma voz de homem disse: «O Senhor Santomé? Oiça está a falar com o tio de Laura. Uma má noticia, senhor. Uma noticia verdadeiramente má. A Laura faleceu esta manhã.».
No primeiro momento, não quis entender. Laura não era ninguém, não era Avellaneda. «Faleceu», algo tão insuportavelmente fácil como isso. Estaria certamente a encolher os ombros. E isso também era um nojo. Foi por isso que cometi um acto tão horrível. (...) «Porque é que não vai à merda?». Nessa altura, tiraram-me o telefone e falaram com o tio.
(...)
Não se preocupe menina, o seu papá está perfeitamente. Sabe o que aconteceu? Faleceu uma colega e ele impressionou-se muito. E com razão, porque era uma rapariga extraordinária». Também ele disse: «Faleceu». Bom, talvez o tio, o Muñoz, e os outros façam bem ao dizer «faleceu», porque isso soa tão ridiculo, tão frio, tão distante de Avelleneda, que não a pode ferir, não a pode destruir.
(...) mexi os lábios para dizer: «Morreu, a Avellaneda morreu», porque a palavra é morreu, morreu é a derrocada da vida, morreu vem de dentro, traz a verdadeira respiração da dor, morreu é o desespero, o nada frígido e total, o simples abismo, o abismo. "

"Então, quando mexi os lábios para dizer: «Morreu», então vi a minha imunda solidão, aquilo que havia ficado em mim, que era bem pouco. (...) Ela começara a entrar em mim, a transformar-se em mim, como um rio que se mistura demasiado com o mar e por fim se torna salgado como o mar. Por isso, quando mexia os lábios e dizia «Morreu», sentia-me atravessado, despojado, vazio, sem mérito. Agora alguém chegara e decretara: «Despojem este tipo de quatro quintos do seu ser». E haviam-me despojado. O pior de tudo é que esse saldo que agora sou, essa quinta parte de mim mesmo em que me converti, continua, no entanto, a ter consciência da sua exiguidade, da sua insignificância. Comigo ficou uma quinta parte dos meus bons propósitos, dos meus bons projectos,, das minhas boas intenções, mas a quinta parte da minha lucidez que ficou comigo chega para me dar conta de que isso não serve. A coisa acabou, simplesmente."

Mario Benedetti, in A Trégua 


Sempre pensei assim sobre a notícia da morte, nunca o tinha visto escrito, mas li e disse para mim: finalmente alguém me entende! Alguém ouve o que eu oiço.
A mim as pessoas não me falecem, as pessoas morrem-me. Falecer soa-me a um amenizar diplomático para a morte, um suavizar para não ferir, um termo mais domesticado, menos agreste, menos duro. Eufemismos. Como se a morte pudesse não ser dura, como se pudesse não ferir, como se pudesse aparecer sem nos arrancar uma parte, sem cerimónias, à dentada de carne quente. As mortes, as nossas mortes, aquelas que nos gritam e nos roubam por dentro, que desarrumam tudo, que deitam tudo abaixo, são duras, são violentas, fazem nascer outras tantas mortes a seguir de que não desconfiávamos, com que nunca contámos. A vida tem ligações tão estranhamente diversas, intrincadas e delicadamente discretas, que algumas só se notam quando acabam, quando são rompidas, e então percebemos que as havia e o que as sustentava - o que nos sustentava. Falecimento não é morte que nos morra, é morte de que tomamos ou damos conhecimento. É morte que não nos toca, não está tão próximo que apunhale, que fira, que mate, que morra. É um tiro limpo, rápido, duma vida acabada hermeticamente. Morrer, morrer-nos alguém, dura para sempre, entranha-se o vazio por baixo da pele, habita-nos o olhar tempos sem fim: o tempo que a morte dura. Dura sempre e é sempre dura. Morrer-nos alguém que gostamos, que nos faz, é arrancarem-nos um bocado que não sabíamos que não era nosso, mas o vazio que fica torna-se nosso para sempre. Enchemo-lo de saudades e de passado que queremos presente, sempre, e não deixa - nunca - de ser vazio.

[porque li agora uma coisa que me fez lembrar este post antigo, de outras vidas...]

Dum ramo inteiro
 num pé minúsculo
Das intenções grandes 
nas coisas pequeninas
Dos pequenos mimos 
que fazem tudo de nada
Das flores com vida guardada, 
mesmo depois murchas
Dos dias que ficam
no que ficou dos dias.
Dos instantes suspensos,
pendurados em minúsculas eternidades,
 nos cheiros, olhares e sorrisos
 que se colam à pele.
Dos dias que passam
e se entranham inteiros entre os segundos
de todos os que se seguirão.
Uma praga ou uma bênção.
Das respostas que se pedem 
ao vento que deixa o tempo passar.