Foi só quando abri a garrafa de vinho. Durante a tarde, a música ligada, os cães por ali e o meu irmão a aparecer volta e meia, e até a ajudar com as rabanadas com técnicas de engenheiro, fizeram a tarde passar bem, mesmo que muito atarefada. O cheiro a canela talvez tenha ajudado. Depois foi o doce da avó, depois já não fiz o bolo de cenoura, substituto do bolo inglês, que era feito para o meu pai, mais ninguém comia… este ano não se fez. Mas passei a tarde comigo, com os cães ,com música, com o meu irmão por bocadinhos. Ao telefone várias vezes, com gente minha, que me faz sorrir, com gente que me liga a perguntar, "viste o céu?... como está?".. não, e lá fui à janela da sala ver aquela maravilha de cores, entre uma rabanada e outra. Ninguém quer crer que esteja na cozinha a tarde toda, entre tachos e colheres de pau. Não é coisa minha, todos os meus o sabem, mas todos sabem porque o faço. Os doces de Natal sempre foi a minha mãe a fazê-los, nunca as empregadas, nunca mais ninguém, senão nós. Bem ou mal, nós. A minha mãe cedo desistiu e recolheu-se, tudo a baralha, tudo lhe faz confusão, tudo é um problema que se chora. Passei o dia de sapatilhas e leggings quentes, não me lembro de alguma vez passar um dia 24 assim, e sem sair de casa, nada. Levantei-me tarde e com uma lista de coisas para fazer... ajuda a não pensar muito, e isso é bom. Às vezes é muito bom. Depois dos doces feitos, a mesa, a loiça do armário da sala, a toalha de Natal. Depois a lenha. Não importa se a casa está quente ou fria, é Natal tem de haver lareira. Mas para isso tenho de ir buscar lenha, e fui, e acendi a lareira. O espectáculo do fogo, a dança das sombras, a intimidade daquele calor. Traz-me muitas recordações... dou por mim a pensar que talvez por isso agora a acenda pouco… depois arranjar-me, vestir-me. Parecer gente normal, e não um piloto de fogão com banda sonora da boa. Escolher uma garrafa. O mesmo que bebi o ano passado, nenhum vinho muito especial, normal, mas bom. Abrir a garrafa. Abrir a garrafa para mim... só para mim este ano, mas fiz questão de a abrir, para partilhar com quem não está, mas está neste abrir de garrafa, na lareira que tem de ser, no lugar vazio ao meu lado que continua ao meu lado, que estará sempre vazio mesmo que não estivesse. E a abrir a garrafa desatam-se as lágrimas que não esperava. Não se anunciaram, vieram só de mansinho e de rompante, sem se poderem trancar antes de soltas. A garganta a tentar dar um nó que não desate. E pôr o vinho à lareira para aquecer um bocadinho. E aceitar. Aceitar que é assim, que o meu pai já não está, que a minha mãe não sabe de si, nem de ninguém, que está, mas há muito que deixou de estar. Abraça-me a chorar quando lhe digo que sou a sua filha, que sou eu. Abraça-me, diz que não me vê há tanto tempo... e os meus irmãos onde estão? E o Papá? Demora muito a chegar? E o vinho aquece um pouco e depois sirvo-o num copo que acabo sozinha, depois de tudo, à lareira, numa paz que já só consigo ter sozinha. Sozinha com todos os que já perdi, duma forma, ou doutra. E aceitamos. E bebemos o último gole e vamos dormir. Fechamos a luz de fora, e tentamos apagar a de dentro. Amanhã, ou seja hoje, há mais coisas para fazer. Há que meter lenha na fogueira dos dias, quer esteja calor ou frio.
Seguir em frente! Feliz 2024 e de coração cheio.
ResponderEliminarÓptimo 2024, Pink!! Que seja um ano cheio de momentos de coração cheio e alma inteira é o que te desejo. Beijo grande. Até para o ano:)
EliminarMinha querida, também fui aos poucos perdendo a minha mãe nas suas idas e vindas, mas sempre mais consciente do que não. E depois partiu de vez neste ano de 2023. Fez-me falta. Pensei que a família se ia desfazer mas parece se ter salvado neste natal. Não tenho lareira, sem família ou amigos, ia custar-me muito aquecer-me. Bom 2024 para si.
ResponderEliminarÀs vezes o que pensamos que pode fracturar, acaba a juntar. Lamento a sua perda, perder um pilar de vida é desabarmo-nos em nós, é muito dificil. Temos de nos amparar com os que ficam e sentem a mesma perda, cuidarmos deles, deixarem que cuidem de nós. Não conheço outra forma, ou é assim que tenho navegado estas águas.
EliminarSabe CCF, o meu maior medo é um dia dar por mim e já não ter presente a minha mãe como foi minha mãe, com quem conversava sempre que chegava a casa, a quem contava as minhas coisas e a quem eu fazia rir... tenho medo de já a ter perdido e não a conseguir guardar dentro, intocada. De a perder irremediavelmente, nas memórias dela e nas minhas que se estão a escrever por cima por uma pessoa que já não é ela, tempo nenhum, ou quase nenhum. E tenho medo de daqui a uns anos ficar assim também, e não me aperceber a tempo de fazer alguma coisa para que a minha filha não passe por isto.
Mas dizem que hoje é dia de pôr os olhos no futuro, pelo menos no futuro ano 2024, vamos fazer isso e desejar que nos traga coisas boas!! Um óptimo 2024, para si CCF. Beijo