sábado, 5 de agosto de 2023



 As meninas e as sombras. Ou as meninas das sombras. Ou as meninas da luz, daquele dourado de fim de dia que alimenta a alma, que descansa o dia que ainda corre nas veias dos pensamentos, sempre a correr, sempre contra o tempo, sempre a tentar comer os atrasos que vão embrulhando as horas do dia, e a  evitar outros que acontecem, porque têm de acontecer por muito que se corra e combata. Mas depois, esta luz, esta cor a pintar as paredes da minha sala. Sento-me no braço do sofá, como tantas vezes, a olhar para fora, a ver as cores mágicas do sol a desaparecer devagar atrás do horizonte do nosso olhar. E é nessa dança lenta e lânguida que nasce esta magia das cores de fogo lento, que aquece, que conforta, que se instala na alma muito depois de olhar já não as encontrar. As meninas ficam doidas com as sombras na parede, com as formas, com os movimentos. Olham a parede como nós olhamos quadros em grandes museus para lhes apreciar a arte e a beleza, e ficam ali, assim a ver as coisas que vêem, sempre à espera do próximo momento, do próximo movimento, do enigma desse jogo de sombras, que apenas escondem a luz que está lá sempre, por trás das sombras. As sombras são também luz, sem luz não haveria sombra. Escuridão não é sombra, escuridão é ausência de luz, se alguém se habitua à escuridão deixa de abraçar a luz, passa a fechar os olhos de estranheza se algum fio de sol lhe invade os dias, um dia deixa de a reconhecer suponho. A escuridão não engana, não tem formas para adivinhar, não há movimentos para observar, não há ilusões de óptica que nos fazem pensar que algo nos toca, nos afaga ou nos morde, quando a realidade está longe disso. A escuridão come até a vontade de luz, torna a luz incómoda, inconveniente. Como em tanta coisa, há vezes em que fechamos os olhos porque não queremos ver mais, ao contrário daquela frase de "depois de abrir os olhos, depois de se ver, não se consegue deixar de ver". Consegue, escolhemos a escuridão. Escolhemos não ser abalados pela magia, não sentir calor. Sombras não é escuridão. Na escuridão não há cores douradas que chamam a noite pela mão, numa dança lenta, lânguida e cheia de prazer,  em que os sentidos se inebriam do momento e ao mesmo tempo duma antecipação de algo que nos acelera o sangue que não pensa. E eu, aqui, vejo luz e sombras na parede, viro costas à janela por momentos e volto os olhos para a parede, para o improvável.  Vejo este quadro que leva a outros, porque uma sombra leva a outra, como uma luz traz outra luz. Por trás de cada sombra há uma luz que foi calor, que foi vida, que foi magia, é quando essa luz fica em nós que devolvemos sombras, sombras que só vemos porque ao redor há luz sobre todas as coisas.

2 comentários:

  1. Nem de propósito, acabei agora de ver um filme Kubrick por Kubrick. Ele falava da cena do Full Metal Jacket da dualidade entre o "Nascido para matar" e o crachat da paz. Dizia ele que as pessoas têm tendência para externalizar o mal, verem-se como boas e o resto como mal. A questão é que somo confrontados a nossa sombra. E nem sempre se gosta do que se vê.

    Mas não são destas. Destas gosto :)

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    1. Gosto muito destas, principalmente com esta luz lusco-fusco… as outras existem, ninguém é só luz. Depois há efeitos e contrastes com piada, com algum encanto, outros não. E cada um terá as suas preferências :)

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