domingo, 19 de março de 2023

[foto @snake72]

Hoje é dia do pai. Há dias, a caminho de ir tratar de umas coisas passei por um sitio que tinha cá fora um quadro preto, onde a giz se lia "Dia do pai 19 de Março" e por baixo o desenho de um daqueles bigodes antigos e revirados. Era uma loja de vinhos. E o dia era de sol, pelo menos naquele momento, que os dias andam demasiado bipolares no que também ao tempo diz respeito, mas para mim, de repente o dia fechou-se e eu fechei-me nele. Eu que dizia que todos devíamos aprender a chorar, eu acho que não aprendi, e choro agora sem saber, e às vezes sem dar conta que vou chorar, e as lágrimas nasceram-me não sei de onde, daquele quadro preto se calhar, de todos os dias seguintes ao para sempre, que é também o nunca que nos afunda numa eternidade imposta. Muitas coisas me passaram pela cabeça enquanto tentava saber porque as lágrimas silenciosamente me caíam, sem saber pará-las, lembrei-me de como gostava de beber, quase orgulhoso (era a única que bebia com ele), uma garrafa de vinho comigo ao jantar, lembrei-me de uma coisa que lhe dei há muitos anos, e que era tão, mas tão, perfeitamente certo e feito quase à medida da maneira de pensar do meu pai, da maneira como via as coisas, os dias, as prendas, tudo... que o tinha pendurado no seu quarto, à vista de todos os dias e todos os acordares, e dizia o qualquer coisa como "o dia do pai não é especial, o meu pai é que é especial". E era isto, o meu pai nunca ligou muito a datas, menos ainda a prendas, entendia que as coisas que são diferentes, que são diferentes porque algo as torna diferentes, e essa transformação não vem de imposição de datas ou obrigações, eram assim e pronto. Era uma alquimia do coração. Se as fizéssemos assim, ou se algo as tornasse momentos que ficam, memoráveis. E era isso que aquilo dizia, e que ele gostava, mas sim, foi oferecido num dia do pai. Como terá sido num dia de aniversário que deu o fio que trago ao pescoço desde que o perdi. Foi das poucas coisas que me deu, e digo isto porque sei que este fio foi escolhe-lo, não foi a minha mãe que foi tratar da prenda como sempre fazia, daquela vez, por alguma razão macaca, foi ele que foi escolher e mo deu, e é a cara dele. Porque via beleza na simplicidade. É a única coisa do género que uso desde aquele dia. Acontece-me sempre isto, deixo de conseguir pôr brincos, aneis, colares. Deixa de me fazer sentido durante uns tempos, não sei quantos. Aconteceu com o meu tio, com o meu irmão, e agora. Dispo-me das pequenas coisas que servem para enfeitar, para compor, para dar graça, mesmo que discreta, mesmo que simples, que como o meu pai também prefiro quase sempre coisas simples. As que não se notam a olho nu, as que se vêem de outras formas, as que se sentem de alguma forma. A única prenda que o meu pai verdadeiramente recordava e falava com um sorriso largo, foi a que recebeu atrasada, no dia seguinte e que era a alegria dele desde então, a neta. O que ele gostava dessa coincidência, como que a reforçar o laço com aquele sapito que adorava dormir de fralda em cima da barriga dele. Poucas vezes o terei visto tão feliz como quando chegava a casa e estavam os dois naqueles preparos. Hoje é dia do pai, acabei de dizer à minha filha que devia ir jantar com o pai dela. Mas é só uma data, é só uma instituição, ter um pai que nos ensinou a essência das coisas em gestos silenciosos, e reconhecê-las e chorá-las, mesmo quando não nos ensinou a chorar, é outra coisa. 

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