Irrita-me já não escrever como dantes, dói-me como se me tivessem arrancado um bocado de dentro de mim à dentada, e a frio. Irrita-me porque sei que não escrevo assim porque já não é para ele que escrevo, já não é para ninguém que escrevo, escrevo para me falar, só. Não para me dizer a alguém. Só para mergulhar em mim e chegar-me a sítios onde não me chego se não estiver fechada dentro duma folha em branco com palavras. Uma dimensão de mim que agora só existe em palavras, em sons, em sorrisos por dar e palavras guardadas por dizer. Um a dimensão de mim que morreu e respira pelas palavras e suspira entre virgulas, agarra-se às reticências como a uma cura por vir não prometida.
Às vezes vou passear por outras vidas, vidas minhas que já não são, vou ler-me e surpreender-me com o que dantes me saía dos dedos da alma, e há uma revolta daninha no peito que me esmaga por já não saber escrever assim, de já não sentir assim, de já não ter a quem entregar as palavras para me saírem assim. Leio-me no passado e espanta-me terem saído de mim, e entristece-me que tudo tenha sido para ele, dele, e que nunca nada tenha sido suficiente. Se o melhor de mim não chegou, se não chega nunca a ninguém, para que sirvo eu? E agora ainda mais, amputada de sentires e de palavras, que se não as tenho sem ele, eram dele. Se não fossem dele não desapareciam com ele - e a revolta esmaga-me o peito ao ouvir-me por dentro, por sentir, por perceber isto; revolta que não se domestica nem acalma. Se fossem minhas as palavras, ainda as tinha a lavrar os dias como quem lavra o vento, incessantemente, pelas velas enfunadas da alma.
Fecho-me dentro de palavras antigas e vejo que havia uma parte de mim arrendada, ou talvez tomada de assalto, invadida, que era dele, era ele em mim antes de o saber ou conhecer, habitava-a e habitava-me, e eu que pagava a renda, religiosamente, todos os dias com amor, com ternura, com desejo, e ainda assim fui despejada. Despejada de mim, despejada por ele, sou devoluta de mim mesma. Quero habitar-me, devolver-me, apropriar-me de mim e das palavras que me espelham, que me são, que sou. Quero ser casa própria em todas as assoalhadas. Não quero ninguém em mim que me seja mais eu do que eu.
"E eis que depois de uma tarde de “quem sou eu” e de acordar à uma da madrugada ainda em desespero – eis que às três horas da madrugada acordei e me encontrei. Fui ao encontro de mim. Calma, alegre, plenitude sem fulminação. Simplesmente eu sou eu. E você é você. É vasto, vai durar."
ResponderEliminarClarice Lispector
Boa semana, Vi;)
A Clarice é fenomenal, majestosa... ando a lê-la e a apontá-la aos poucos :)
Eliminar... e sim eu às três da manhã às vezes também me encontro, dá-me normalmente para escrever enquanto fumo um cigarro, quando isso acontece... e tem acontecido nos últimos dias :)
Às vezes acho que sei quem sou e quem deixei de ser por falta de prática... e isso é que me chateia com'ocaraças! e isso sim é vasto e dura...
Boa semana, Legionário :)
Ainda bem que escreves de ti para nós. Pese embora não seja para um ele, és rica, escrevem os dedos da tua alma. Para mim isso já é fantástico.
ResponderEliminarBeijo
Não me sinto rica, sinto-me despojada, roubada, amputada... e isso não é pacifico para uma moça como eu, nada pacifico... dá-me cá umas raivas às vezes que nem te digo...
EliminarEu escrevo mas sinto que já não escrevo como quando sabia sentir, quando só sabia sentir, por não me caber mais nada.
Mas é tão bom ouvir que há quem goste de me ler :) é mesmo.
beijo
EliminarOlha subscrevo totalmente as palavras do CC; obrigada por escreveres de ti para nós como ele bem diz.
:)
Beijos Vi, com folhas e pétalas
Nanda
Vocês são uns queridos mazé... :))
EliminarEntão já viste... ;)
Beijo, Nanda