domingo, 2 de abril de 2017

Às vezes colecciono palavras, ponho-as alinhadas na mesa que há dentro da minha cabeça, tem tampo de madeira ruiva a minha mesa montra de palavras. Disponho-as e disponho-me a lê-las, não as letras, a alma das palavras, deixo-as conversar com as minhas. Arar os sentidos para chegar à essência - provavelmente a minha, e só a minha, através da delas. Hoje saltaram-me à vista as palavras raras como as pessoas consistentes, à prova de contrário,  direito à prova de avesso. Rompem a ilógica lógica do avesso, do sentido oposto ao certo que assim não é errado. 
As palavras dispostas, bem dispostas alinham-se em mera aparência de desalinho, e eu aprumo o sorriso na trama que tramam:

ana
ama
ara
seres

ele
ala
ata
saras

ses

Gosto de palavras, gosto destas palavras, porque são espelhos de si mesmas, simétricas e fiéis; porque se as partirmos ao meio restam-se em metades iguais. Gosto de algumas palavras sem razão de gostar, gosto só porque sim, vejo-as junto ao canto da mesa quase a cair em si de mim... gosto da palavra desejo, de como soa, de como a boca o diz, de como anda como se desfilasse, de como corre e ganha terreno debaixo dos pés, por dentro da pele; como gosto de ensejo, como quem arqueja e flameja à ideia duma ideia, como quem estende os braços para o devir e sente poder fazer acontecer o que ainda não se vê, o que ainda ninguém viu; como gosto da palavra sussurro por ser meiga e falar baixinho cheia de açúcar arrastado, como me aquece o conforto passar pela palavra aconchego que se me enreda no calor da pele, e apego por não querer largar e quem não quer largar quer alguma coisa que tem medo de perder, mesmo que não tenha coragem de o dizer nem a arrogância de se impor,  como gosto da palavra alma que me aparece como cor, como véu diáfano que envolve sem tapar, que deixa ver sem mostrar, dum azul esverdeado acinzentado, não tão simplesmente azul nem sequer verde reluzente de vida, nada cinzentão de apático desmaiado, mas sim como os olhos do mar... adoro a palavra mar, evoca-me amar, chama-me pela boca e leva-me pela mão, salga-me a pele e adoça-me os lábios, leva-me no prefixo perfeito que completa a imensidão que liga tudo...  que ondula, que tem marés, que se revolta, que engole tudo em tempestade, mas que em maré nenhuma deixa de lamber a pele da praia. Consistência e persistência, mesmo que tenha ondas, vagas, marés e tempestades, o seu lugar não deixa vaga - é um sítio inteiro.
Subo do mar ao rio, rio-me com a escalada nas palavras. Mar e rio: uma é filha da outra e nenhuma tem contrário falta-lhes o avesso para saber o direito. Quando não há avesso, haverá direito?...Pergunto-me enquanto arrumo a mesa e lhe desembaraço os cabelos ruivos de feiticeiras palavras... E as letras emaranhadas nas mãos continuam a tagarelar-me... O mar tem mãe, mas o rio é filho do céu, que tem todas as cores da alma. O mar reflecte-as. 
Sem ses. 
Ama. 
E quem ama tudo sara.

2 comentários:

  1. um destes dias apareceu-me uma palavra que nã via faz tempo: amortizar. que começa com amor, mas é de morte que é feita... e daí fiquei a pensar como amor e morte são parecidas... mas mar também é parecido, talvez sejam todas as palavras básicas parecidas...

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  2. Ai, Manel, ainda é fim‑de‑semana, não me lembres trabalho, para mim amortizações são custos, contabilidade chata, encerramento de contas, resultados maus... Bahhh
    Mas tens razão, o que começa com amor acada muitas vezes em morte e em dor, mas o que acaba em mar parece renascer, como um vício que não larga as costas que o tempo e as vagas vão esculpindo... As palavras não são todas parecidas, o que elas te dizem é que talvez seja parecido contigo, como as lês...
    Bom domingo, MMT :)

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