terça-feira, 31 de janeiro de 2017


Só não o senti debaixo dos dedos, já não me lembro de como era senti-lo debaixo dos dedos, da ponta dos dedos, terminações da alma. Vi-o à minha frente, à distância que não tínhamos quando me sentava no seu colo, o meu pequeno reino, onde nunca fui rainha, mas me sentia eu. Passei-lhe as pontas dos dedos por aquela linha do queixo que o fazia arrepiar-se e encolher-se menino, segui a linha do maxilar, subi até as sobrancelhas que penteava por vocação e devoção, uma e outra vez, contornava o olho que sempre me olhava quase semicerrado, entre o ronronar lento e a malandrice sempre desperta, que eu adorava. Apanhava-o a olhar-me muitas vezes, acho que nunca ninguém me olhou tanto... Mas sigo o meu passeio pela ponta dos dedos, mapeando o reino que nunca foi meu, onde nunca tive trono ou sequer cadeira, onde calcorreei o tempo descalça sem nunca me cansar, passo pelas têmporas mal tocando a pele, tão ao de leve como o esboço duma intenção, para as maçãs do rosto, duma ossatura que conhecia tão bem, que se me colou ao esqueleto como uma outra costela minha, certamente roubada à nascença e que eu nem sabia que me faltava... das maçãs do rosto chegamos à boca, desenho-lhe os lábios devagar já desenhados por baixo dos dedos, a boca perfeita de beijos - de beijos que me eram perfeitos. Dum canto ao outro, percorro-a devagar, ganha vida num beijo que me poisa nos dedos. Raras as vezes em que os meus dedos, fazendo aquele caminho, não eram beijados numa ternura doce dum calor meigo. Vi tudo isto há bocado, no silêncio dos carris a serem percorridos - a lembrar-me outros carris que tanto brincava de falar -, enquanto os dedos poisados no vidro frio, buscando horizonte na paisagem em vez de pele quente como chegada, denunciavam já não terem memória destes passeios, mas as imagens, essas, tenho-as todas, guardo-as ainda. Para quê? Porquê?... Estou agora a ver aquele pedacinho que me deu, que declarou meu, bem no meio dele, dentro do peito, a pouca distância de onde deveria ter o coração todo meu, vejo-o perfeitamente à luz da rua que nos entra pelas janelas sem invadir o espaço que guardamos para nós, onde nada mais parece entrar. Nem a luz entra entre nós, mas ilumina-nos, e é sob essa luz que lhe vejo o peito, que o gravo para buscar agora e ter à minha frente, debaixo de mim, enquanto passo devagar, ao de leve, os meus dedos pelo que me deu sem nunca ter sido meu. Levanto os olhos e olha-me. Nunca ninguém me olhou como ele, nunca ninguém me olhou tanto como ele. Nunca ninguém, como ele, viu tão pouco em mim. Tenho a ponta dos dedos tão gelada... 

4 comentários:

  1. enfim...vejo-me no que escreves..

    enfim!!!


    bom dia Olvido

    ps: é das coisas que mais sinto falta...o olhar!

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  2. :))
    Tenho essa mesma sensação em muitas coisas que escreves... Devemos ter o mesmo género de avaria... ;)
    Bom dia, Moonchild

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  3. Quando arranjares um mecânico avisa!!! um dia destes aqui o motor cerebral gripa e eu fico na mão...já faltou mais!!!

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  4. ... tens é de ficar em boas mãos... e isso não é qualquer mecânico, senão safava-me bem... :))

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