terça-feira, 24 de janeiro de 2017


O carro marcava 4 graus, o frio fechado lá fora, com ar ameaçador, senti-o querer entranhar-se em mim, nas mãos com que moldo a vida, imaginei que me pudesse congelar o sangue nas veias. Imaginei que o frio podia matar, literalmente e em sentido metafórico. Subi as escadas com vontade de um café com calma, quente, que me aquecesse as mãos e me impedisse de gelar o sangue. Está agora nas minhas mãos, o literal, não o metafórico. Metaforicamente a minha vida continua gélida, literalmente também.
Queria sentar-me aqui, escrever o que me viesse à cabeça mas não pensar em nada que queira esquecido. Talvez por isso ande a escrever menos, porque me faz puxar fios de mim que me levam onde não quero ir, ainda que seja lá que eu esteja, onde me sou mais inteira e mais eu. Mas dói mais e eu não quero. Tudo o que me passa pela cabeça que pudesse escrever sem ir a esse sítio, sem ter de sair muito da cabeça, sem vaguear por mim, tenho uma preguiça danada. Falta-me um motor qualquer que me arranque, que me dê motivo, que me dê a vontade para vencer a inércia. Acabo sempre por escrever para conversar comigo, quando começa a ser mais uma necessidade que uma vontade. Como trabalhar, como respirar.
O café já foi e eu depois disto tudo ainda estou a tentar atafulhar para debaixo do tapete de sombras aquela frase..."já viste como é macio e fofinho o focinho dos cavalos?..." E de repente caí naquele buraco negro do tempo: as coisas melhor de tocar "a minha pele, patinhas de gato bebé, focinho de cavalo". Fiquei a pensar por que me lembro, por que tanta coisa me faz ainda lembrar. Houve mais coisas durante o fim‑de‑semana que me arrastaram no tempo, mas agora tento nem escrever para não as lembrar melhor, para as deixar resvalar pelo tempo que as trouxe, para não ficarem tanto em mim tanto tempo, se calhar. Pergunto-me porque me perseguem tanto tantas recordações, do nada, umas coisas puxam as outras, esta foi a que ficou mais tempo, mais marcada, cristalizada em mim, mas houve mais. Há sempre. Não percebo porquê, porque do outro lado nada me faz aparecer, nada arrasta o tempo em palavras ou gestos, porque esse tempo não lhe ficou dentro, encurralado, encravado no presente a obstruir o futuro, não ficou, não fiquei. E é isso que me dá ainda mais vontade de não escrever, de riscar tudo de mim a vazio. E quando não consigo escrevo para debaixo do tapete de sombras de olvido, à espera que os faça desaparecer.

6 comentários:

  1. Lutas internas, quem não as tem!!!

    bom dia


    ps: se riscares de ti não estarás a riscar a melhor parte de ti - aquela que sente?

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  2. Moonchild,
    se essa é a minha melhor parte é só para os outros, a mim só me dá dor e desgosto, riscava-me inteira a vazio sem pestanejar nos dias que correm. Almejo o vazio - do que espera ser preenchido, não do que está atafulhado de perdas e faltas por apaziguar - como oxigénio de alma.
    Bom dia :)

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  3. Olvido: Tens razão. Não tinha olhado dessa forma


    :)

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  4. Eu já só consigo olhar desta forma... :))

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  5. Vi, minha querida,Aqui está mais uma vez algo incrível: traduzes tal e qualzinho tudo o que muito frequentemente penso e sinto mas não consigo escrever... bastam pequenos detahes do dia a dia, uma palavra, um aroma, uma melodia, uma brisa na pele, pequenos nadas, mas que são o suficiente para inconscientemente despoletar recordações e de repente caímos nesse buraco negro do tempo de que falas.
    A memória ás vezes é um abismo.
    Bom dia, Vi.
    Beijo
    Nanda

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  6. Nanda,
    É isso, a memória é um abismo onde se cai sem darmos conta, distraímo-nos, e lá vamos nós no carrossel que apanha boleia do passado e anda às voltas sem sair do sítio... E não há como evitar, ou eu ainda não sei como evitar...
    Bom dia :)

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