domingo, 20 de novembro de 2016

[foto @bnwsouls]

Viu o café à beira da estrada. Apeteceu-lhe parar, beber um café para adormecer pensamentos demasiado acordados. Café central - leu e nem se deu conta do sorriso esboçado que lhe saiu da gaveta, sem ter dado conta de a abrir. Essa gaveta, onde guardava pedaços de tempo, como papéis rascunhados de silêncios que se foram acumulando por dizer. "Não comeces, assim estragas tudo" ouviu algumas vezes pela vida dentro e, a cada vez, a gaveta ia aumentando o fundo. Porque, pareciam nunca entender, assim tudo se ia inevitavelmente estragando sem, no entanto, vez alguma estragar o momento - aquele que, naquele preciso instante, encurtava futuras eternidades. Não falava para estragar, mas para não ficar estragado, a apodrecer por dentro das teias do que não se entende, não se pede e não se esclarece. Para não estragar. Encostou. Desligou o carro. Ficou a ver os pingos de chuva a fazerem a sua descida radical pelo vidro, nunca se assustavam, raramente caíam, apenas deslizavam, como se o destino de alguns não seja cair, tropeçar de engano, de falha, mas de deslizar até ao chão, sem embate, sem mossa, sem resistência que resulte em frustração teimosa. Em medo a crédito. Deixam-se, apenas, ser o que são, nunca caindo, só descaindo, resvalando chuva fora, vida adentro. Resolveu, no meio de tanto pensamento infantil, ganhar coragem e servir de chão a uns quantos pingos com esgares bélicos, tal a força com que, de repente, pareciam querer bater. Entrou, três cabeças se voltaram, a quarta ressuscitou do mergulho por baixo do balcão... Pareciam pouco habituadas a ver mulher por ali, ou talvez só a ela, porque não era de cá, ou melhor, de lá. Mas, estivesse onde estivesse, ela sempre lhe parecia não ser de lá... Ou de cá. Sorriu, um sorriso não encorajador de desconhecidos, e pediu um café. Pagou, pegou na chávena e levou para uma mesa gasta pelo descuido, acompanhada de uma cadeira onde pouca tranquilidade se parecia ter alguma vez sentado. Dali via a chuva, ouvi-a sussurrar-lhe aos ouvidos como música que embala quem quer acordar uma qualquer vida que perdeu nalgum sítio, e que já não procura. Abriu o pacote de açúcar, não sem antes ler a frase que lhe calhou em rifa, à moda de fortune cookie de trazer por casa, mas sem futuro ou fortuna... Riu-se. Despejou o açúcar e olhou o café em espiral enquanto o mexia. Olhou o remoinho da vida, pensou que lhe fazia falta - tanta, mas tanta - olhar no fundo duns olhos e ver uma alma a mexer o açúcar do tempo. Misturá-los, bebê-los juntos num olhar que não se troca, mas em que se mergulha. Mergulho de profundidade. Talvez daqueles de que não se sobrevive inteiro.
Bebeu o café que lhe pareceu amargo. Não chegou a fumar o cigarro, havia de o fumar no resto do caminho, com música a iluminar o silêncio. Levantou-se, correu de volta para o carro, tentando passar entre os pingos da chuva. Tirou o pacote vazio de açúcar do bolso. "Bom dia a quem bateu com a cabeça na parede". Há sempre cabeça para mais uma (ou falta dela, e nos dias em que lhe doía menos tinha a certeza que era coisa que não queria ganhar). Abanou a cabeça e riu-se. Continuou.

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