Acabei há tempos (mais) um livro do Rentes de Carvalho, que gosto, este, o seu primeiro romance: "Montedor". A essência do comportamento daquela personagem traz-me à pele cheiros de um passado que se me entranhou. Alguém que deixa a vida ao deus-dará (empurrando com a barriga, como ele dizia), que diz que não-que não-que não!!, mas depois faz sim-sim-sim!.. e desculpa-se com os contextos, intervalados com a lucidez do que não podem desculpar. Infeliz a vida toda, acomodado naquela felicidade pastosa de se obrigar a fazer o que os outros tanto insistem, e aí, assim, se desculpar do que foi feito - porque foi obrigado, foi obrigação. Na verdade sempre achei que houvesse gente assim por não haver uma razão forte, irrecusável e inadiável para agarrar a felicidade que se diz sonhar, e a lutar sem dúvidas por ela. Mas como bem se diz, em página que dobrei no canto:
"o meu desejo era encontrar alguém, mudar de ideias, porque todo este dinheiro me pesa. Sem coragem de decidir. É bonito ficar a gente a moer ilusões, outra coisa é arriscar, dar o passo em frente. Nada mais fácil do que entrar numa loja, comprar o preciso e seguir para Lisboa. Não era lá que me parecera melhor?"
Extraordinário. Tinha decidido, fez até o que não devia em nome do que dizia querer, e depois quase implora por alguém, que por alguma razão, lhe mude as ideias, lhe impeça o plano. Auto-sabota-se a cada vez. Não quer nada com ganas, empastela-se e desiste-se, sem nunca desistir de continuar a fabular sonhos. Não toma para si a opção de optar, como se soubesse que nunca seriam as suas mãos a mudar nada, mas a própria vida a tecer a sua teia, essa rede onde ele se quer deixar prender e desculpar - como for, ao que for, desde que não haja rupturas, mudanças bruscas, opções assumidas e consequências por que temos de nos responsabilizar. Como as eternas crianças a quem se escolhe a roupa do dia e o caminho a tomar.
"Não caso, não caso"
... e casou, e foi, e fez, e fez toda a gente infeliz à sua volta. Nunca fez nada por si, sucumbindo (por não se lhes opor com algo mais que palavras e pensamentos que se diluem constantemente) sempre à vontade dos outros, que depois, na verdade, não lhes concede mostrando-se sempre contrariado.
O que podia ter mudado tudo - aquele momento em que podia finalmente descansar, por tentar encontrar no que não quis o que afinal sempre procurou -, a pergunta à mulher que tinha engravidado, mas com quem não queria casar:
"tu gostas de mim?"
Pergunta tão simples e tão imensa. A resposta, que lhe carimba o destino, é resultado de tudo o que fez até ali e dali colhe:
"não é por gostar, não! Mas ao menos não precisas de me enganar, ir por aí com alguma!".
Não sei se a resposta fosse a oposta, mas não sentida como verdadeira, não seria o mesmo, ele sente-se sozinho, incompreendido, sente-se um ninguém - e principalmente, a esta altura, não amado. Com isto a última réstia desfaz-se, o coração parece secar, aloja-se a sensação de ser um joguete, aceita não dispor de si mesmo como a uma culpa sem razão.
"mas faltava-me o norte, um interesse, carregado de uma culpa que me não explicava, um remorso, o sentimento de ser joguete, brinquedo, Zé-ninguém."
Ele será sempre infeliz, cumprindo o destino, afinal, de se tornar igual ao pai. Paira, aliás, no ar a ideia - e penso que o livro é feito propositadamente no sentido de dar essa sensação - de que ele nasceu sob as mesmas circunstâncias que a sua filha. E o seu casamento será igual ao dos seus pais. Os ciclos vencem a vida, e a nossa vida é um único ciclo.
Sempre achei que se estas pessoas encontrassem "um norte, um interesse", um amor (acrescento aqui), fariam pela vida e quebrariam o ciclo de vidas mal vividas, de fantoches que se obrigam a ser fantoches para não fazerem uma ruptura da fantochada. E depois disso, desse renascer, debaixo desse carnaval despido, serem de facto alguém e saberem-no - saberem-no é a única e fundamental diferença que muda todo o olhar sobre o mundo, sobre quem somos e podemos ser. Na verdade, ainda acredito nisso, mas no livro ele não encontra. Ou quero acreditar que foi isso. A alternativa é que talvez estas pessoas nunca amem, amar é uma coisa que se sente e tem de se assumir. Estes espécimes nunca assumem nada, por isso talvez sejam incapazes de amar.
Amar é uma escolha que assumimos. Ou não.