quarta-feira, 13 de dezembro de 2017

Acabei há tempos (mais) um livro do Rentes de Carvalho, que gosto, este, o seu primeiro romance: "Montedor". A essência do comportamento daquela personagem traz-me à pele cheiros de um passado que se me entranhou. Alguém que deixa a vida ao deus-dará (empurrando com a barriga, como ele dizia), que diz que não-que não-que não!!, mas depois faz sim-sim-sim!.. e desculpa-se com os contextos, intervalados com a lucidez do que não podem desculpar. Infeliz a vida toda, acomodado naquela felicidade pastosa de se obrigar a fazer o que os outros tanto insistem, e aí, assim, se desculpar do que foi feito - porque foi obrigado, foi obrigação. Na verdade sempre achei que houvesse gente assim por não haver uma razão forte, irrecusável e inadiável para agarrar a felicidade que se diz sonhar, e a lutar sem dúvidas por ela. Mas como bem se diz, em página que dobrei no canto:

"o meu desejo era encontrar alguém, mudar de ideias, porque todo este dinheiro me pesa. Sem coragem de decidir. É bonito ficar a gente a moer ilusões, outra coisa é arriscar, dar o passo em frente. Nada mais fácil do que entrar numa loja, comprar o preciso e seguir para Lisboa. Não era lá que me parecera melhor?" 

Extraordinário. Tinha decidido, fez até o que não devia em nome do que dizia querer, e depois quase implora por alguém, que por alguma razão, lhe mude as ideias, lhe impeça o plano. Auto-sabota-se a cada vez. Não quer nada com ganas, empastela-se e desiste-se, sem nunca desistir de continuar a fabular sonhos. Não toma para si a opção de optar, como se soubesse que nunca seriam as suas mãos a mudar nada, mas a própria vida a tecer a sua teia, essa rede onde ele se quer deixar prender e desculpar - como for, ao que for, desde que não haja rupturas, mudanças bruscas, opções assumidas e consequências por que temos de nos responsabilizar. Como as eternas crianças a quem se escolhe a roupa do dia e o caminho a tomar.

"Não caso, não caso" 

... e casou, e foi, e fez, e fez toda a gente infeliz à sua volta. Nunca fez nada por si, sucumbindo (por não se lhes opor com algo mais que palavras e pensamentos que se diluem constantemente) sempre à vontade dos outros, que depois, na verdade, não lhes concede mostrando-se sempre contrariado. 
O que podia ter mudado tudo - aquele momento em que podia finalmente descansar, por tentar encontrar no que não quis o que afinal sempre procurou -, a pergunta à mulher que tinha engravidado, mas com quem não queria casar:

 "tu gostas de mim?" 

Pergunta tão simples e tão imensa. A resposta, que lhe carimba o destino, é resultado de tudo o que fez até ali e dali colhe: 

"não é por gostar, não! Mas ao menos não precisas de me enganar, ir por aí com alguma!"

Não sei se a resposta fosse a oposta, mas não sentida como verdadeira, não seria o mesmo, ele sente-se sozinho, incompreendido, sente-se um ninguém - e principalmente, a esta altura, não amado. Com isto a última réstia desfaz-se, o coração parece secar, aloja-se a sensação de ser um joguete, aceita não dispor de si mesmo como a uma culpa  sem razão.

"mas faltava-me o norte, um interesse, carregado de uma culpa que me não explicava, um remorso, o sentimento de ser joguete, brinquedo, Zé-ninguém." 

Ele será sempre infeliz, cumprindo o destino, afinal, de se tornar igual ao pai. Paira, aliás, no ar a ideia - e penso que o livro é feito propositadamente no sentido de dar essa sensação - de que ele nasceu sob as mesmas circunstâncias que a sua filha. E o seu casamento será igual ao dos seus pais. Os ciclos vencem a vida, e a nossa vida é um único ciclo. 
Sempre achei que se estas pessoas encontrassem "um norte, um interesse", um amor (acrescento aqui), fariam pela vida e quebrariam o ciclo de vidas mal vividas, de fantoches que se obrigam a ser fantoches para não fazerem uma ruptura da fantochada. E depois disso, desse renascer, debaixo desse carnaval despido, serem de facto alguém e saberem-no - saberem-no é a única e fundamental diferença que muda todo o olhar sobre o mundo, sobre quem somos e podemos ser. Na verdade, ainda acredito nisso, mas no livro ele não encontra. Ou quero acreditar que foi isso. A alternativa é que talvez estas pessoas nunca amem, amar é uma coisa que se sente e tem de se assumir. Estes espécimes nunca assumem nada, por isso talvez sejam incapazes de amar.

Amar é uma escolha que assumimos. Ou não.

4 comentários:

  1. Amar, só? Não, viver. Viver mesmo é uma escolha que assumimos, o resto vem a seguir. E, isso exige coragem, que nem todos têm dentro de si.
    ;) Um beijo

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    1. Viver não acho que seja uma escolha... há dias em que é uma obrigação, outras é só o instinto de sobrevivência que não nos deixa deixar de respirar, noutras é uma benção uma felicidade, mas escolha, escolha não acho que seja. Eu não escolhi viver, deram-me vida, acho que aliás é a única coisa verdadeiramente dada, tudo o resto, de alguma forma, tu tens de fazer algo para ter ou para continuar, ou para o que for. Só para seres concebido não tiveste de fazer nada... amar sim, amar de forma plena, é uma escolha. é o que penso, assim, desta forma como te escrevo.
      Talvez fosse melhor não pensar assim, mas é porque o sinto.

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    2. Isso é respirar :).
      Quis usar a palavra no sentido completo e total dela. Mesmo viver e não ir vivendo. ;)

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    3. e isso é escolha? não acho que seja, é um conjunto de coisas que te permite isso, e nem todas estão nas tuas mãos... então como pode ser escolha tua? Por isso te digo há dias em que é uma benção, é sentir a plenitude da vida, a vida a que enche às vezes o peito e o olhar, mas isso não é escolha até porque é espontâneo, de resto, sim, é ir vivendo (na melhor das hipóteses, às vezes é ir morrendo devagar... o que é pior). Não concordo nada com a frase de que se escolhe ser feliz... porque a minha felicidade não, não depende só de mim, passa por muitas outras pessoas também.

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