Chegou a casa com o sol a debruçar-se sobre o horizonte, poisa as chaves, a carteira e a pasta carregada de papéis, desce dos saltos - primeiro um, dois passos à frente o outro. Descalça encaminhou-se para a porta de vidro que lhe pareceu mais pesada que em qualquer outro dia. Lentamente correu-a e a brisa logo caminhou pela sala levando parte do peso que lhe curvavam os ombros desde manhã. A madeira do alpendre, debaixo dos pés, ligeiramente aquecida pelo sol que insistiu em embrenhar-se durante todo o dia, criava um conforto mono a cada passo. Sentou-se no cadeirão e poisou o olhar no horizonte, procurando deixar-se lá. Fechou os olhos, tentando abandonar-se, evadir-se de pensamentos, esvaziar-se de quotidiano, e vazia deixou-se ficar na escuridão das pálpebras descidas, ouvindo apenas a sua respiração e o chilrear dos pássaros que não via. Deixou-se estar, tentando saborear uma paz que lhe era sempre fugidia de tão ilusória. Lembrou-se da frase que lhe surgira durante o dia enquanto os saltos calcorreavam a calçada na correria a que ultimamente se dedicava, "pensas logo existes", e ela, num curto circuito de palavras, apanhou um pequeno choque quando o contrário se iluminou: quem pensa não tem tempo para existir: existe menos. As existências não pensadas existem melhor, e mais. E agora, ali descalça, de olhos fechados, queria apenas existir não pensando. Reduzir a existência apenas à essência de ser, se pudesse ser. Um sorriso pareceu assomar-lhe os lábios, como a brisa que levemente remexeu as folhas da árvore que lhe invadia o alpendre todas as primaveras, mas de que mal se dava conta. A respiração pareceu distrair-se, já não dava por ela, e nesta distracção surpreendeu-a o pulsar do coração fora do sítio... sentia o coração nas mãos, aliás, na ponta dos dedos, algo lhe palpitava por dentro e sentia-o nos dedos que terminavam as mãos vazias. Houve um enrugar da testa que alguém se teria apercebido se a observasse. Depois o coração sentiu-o nos joelhos, numa espécie de formigueira ritmado que parecia um coração, algum coração perdido de si, seguiu-se o pescoço e o colo, e foi então que instintivamente levou a mão ao coração, para lhe tomar o pulso, e não, não estava lá, não sentia nada. O coração havia desaparecido, não batia no sítio, espalhou-se pelo corpo, perdeu-se. Sentiu chegar-lhe uma ansiedade sem razão, como um pressentimento de algo que estaria para chegar sem ser anunciado, ou algo essencial que fugiu sem razão conhecida. Só se lembrava de se sentir assim de todas as vezes que àquela mesma hora fazia tempo para esperar pelo amor que não seria nunca da sua vida, mas que foi. Aí ainda tinha o coração no sítio, agora parecia ter desaparecido e sentia-o apenas ao longe, espalhado pelo corpo, a palpitar à ressonância de um coração que ela não trazia no peito. Abriu os olhos, viu à sua frente, muito parado, um pequeno pássaro a olhar para ela. Ficaram assim não sabem quanto tempo, num instante que parou o relógio, a perscrutarem-se pelo olhar, até que ele bateu asas rumo ao anoitecer que já se instalava. Deixou de sentir aquela ansiedade, o coração a palpitar onde lhe faltava colada outra pele que lhe levou o coração do peito havia muito tempo... respira fundo, pesado, e de entre os lábios houve um sussurro que ficou por ouvir "Existe melhor quem não pensa, vive melhor quem não sente. Viver é aprender a bater asas."