terça-feira, 2 de maio de 2017

Tenho de voltar a ler o livro*. Há qualquer coisa naquele livro de inacessível na primeira leitura, algo á que não cheguei, não consegui ir ao fundo de todos os pensamentos, é intrincado e tão interior. Tive de me levantar e vir fumar um cigarro, alguma coisa mexeu comigo. Sei que tenho de voltar a lê-lo, daqui a uns anos, terei de voltar a lê-lo. É o segundo livro que leio e que me deixa esta sensação, o outro li três vezes e arrumei-o no Verão passado - está a fazer um ano, curiosamente, como outras coisas aliás - depois de o ler três vezes, e até achar que o li todo. Também neste fiquei com a ideia de que há camadas a que não fui, apenas as vislumbrei sem consciência nos olhos, e esta sensação inquietante e aterradora de que muito ali me é familiar. Reconheco, reconheço-me. Há coisas que ela descreve que eu sinto às vezes, ou que senti, ou que penso, sem saber que estou a pensar. Como ela diz, há coisas que nos vêm como resultado intuitivo do que já pensámos muito racionalmente. E isso acontece-me. Muito. Depois tenho de parar e escalpelizar cirurgicamente cada ideia dessas, cada pensamento, cada ideia que me sai baralhada por nao saber identificar donde veio, ou como me chegou, para poder entendê-la, cosê-la com uma linha que se consiga prender, seguir, ler, entender. As últimas páginas são absorventes, o culminar do acordar para a existência consciente, para a vida, para o eu. E como tudo se mistura. Só chegamos a nós mesmos através do amor, mas só atingimos o amor sendo nós mesmos; é um espelho de aproximações ao mesmo objecto em sentidos trocados, porque se trocam, porque há uma troca, um dar e receber. Quanto mais for eu mais amo, mais tenho capacidade de amar e ver o outro, e sou cada vez mais eu quanto mais amar. É como chegarmos a nós através duma porta que só podemos abrir do lado de lá. Mas abrimos. Se do lado de lá estiver uma parte de nós no outro. E é essa parte que nos acorda em nós o que não sabíamos ter, o desabrochar como ela escreve, e assim há uma plenitude de parte a parte...Talvez seja por isso a frase "nós somos amor". Porque só assim, pelo amor, chegamos a conhecer inteiro o verdadeiro eu, a ter consciência de nós, do que somos e do que podemos ser. Só quando não temos medo do outro, do que ele veja - só aí os nossos olhos abrem para tudo o que temos dentro. E depois de nos vermos assim, não temos mais medo que os outros nos vejam ou como vejam. 
Tenho de voltar a ler o livro, não tenho dúvidas. Agora tenho de fumar um cigarro. Alguma coisa neste livro me alvoroçou. Me fez sentido. Me encontrou num desencontro qualquer.

* Uma aprendizagem ou o Livro dos Prazeres, Clarice Lispector 

4 comentários:

  1. é um livro que se lê sempre, sim.

    boa semana, Olvido

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    1. Quero voltar a lê-lo, não agora, mas quando puder retirar mais camadas dele, por enquanto ainda tenho de digerir tudo o que agora li.
      Boa semana, Lauzinha ;)

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  2. Bom dia, Vi!
    Gostei muito dessa tua imagem "...É como chegarmos a nós através duma porta que só podemos abrir do lado de lá.Mas abrimos. Se do lado de lá estiver uma parte de nós no outro..."

    Estou a ler e também a rever-me , a "reconhecer-me" em muito em tanto... na angústia... no não entender... na cena da piscina...
    Ainda só li metade do livro e acho a caminhada dela cada passo/ revelação...ena! fascinante.

    É uma escrita muito densa não é? A forma como ela fórmula os pensamentos. São preciosidades como as da caverna de Ali Babá. :)

    Beijo :)


    Nanda

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    1. Também estás a lê-lo??... que giro!! andamos em sintonia hein?
      ...pois eu acabei de o ler e aquilo mexeu comigo... sim, muita coisa ali não me é estranha, mas há tanto a que sei que não consegui chegar, não consegui entender até ao fundo, senti-lo se calhar. Tenho essa coisa esquisita de que acho que só entendo realmente alguma coisa quando a sinto, até lá são como fórmulas matemáticas correctas, mas que não sei manusear nem aplicar. Como quem decora mas não aprende.
      Tenho de me deixar crescer um bocadinho mais, amadurecer dos ossos até à ponta dos dedos, talvez depois já consiga mergulhar em mais uns tantos parágrafos de que agora não saí para fora de pé.
      Beijo, querida nanda :)

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