segunda-feira, 4 de setembro de 2017

Reconheci aquele gesto... Numa fila interminável de trânsito a caminho do mar, o retrovisor trouxe-me à flor da pele o passado que não sei se existiu. 
Reconheci aquele gesto que vi acontecer dentro do carro atrás do meu, repetiram-mo tantas vezes, repeti-o tantas e tão menos do que gostaria. Repeti-o na memória, ali, sem tempo conjugado, entre um nada e outro, como quem cai no abismo do tudo. Reconheci naquele gesto um carinho, uma festa na cara do outro, que encontra aconchego entre o ombro e a face, moldando-se como quem quer guardar o carinho e devolvê-lo no beijo que deixa naquela mão. Enterneceu-me... a doçura, o saber dar e receber, a naturalidade de tudo - sempre estes pequenos nadas me deixaram o por dentro em turbilhão, no meio de tudo que me faz o todo. Repeti aquele gesto tantas vezes e ainda tão poucas, num lado ou outro da mão, num lado ou outro do beijo... Dei por mim a perguntar se também estes gestos, estes nadas, pedaços inteiros de tudo, se também estes não resistirão à hipocrisia... se ele mais logo vai dizer que não a suporta, que já não a pode ouvir, que até os barulhos que faz a dormir o irritam, ou se já se empurraram alguma vez no calor da raiva, se a acha ridícula quando ela se acha sensual, se se odeiam a maior parte do tempo longe dos olhos do mundo, fechando entre quatro paredes, aquilo de que as paredes os deveriam proteger. Será? Será que não há gestos resistentes à hipocrisia? À prova de hipocrisia, que só surgem genuinamente doces, ternos, naturais, sentidos, aconchegados nos momentos em que sentimos perfeitamente o avesso da pele quando paramos para recordá-los. Na altura não os pensamos, desenrolam-se ao sabor do que se sente, só - pensá-los é já o começo duma hipocrisia, duma intenção de razão calculada. 
Reconheci o gesto, seria o mesmo?

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