quarta-feira, 27 de setembro de 2017


Aqui à minha frente, a pintarolas e os seus fenomenais penteados de orelhas... e a meiguice, a traquinice, o olhar que fala, o procurar os meus pés para abrigo e almofada, tudo isto é ela... Nunca ninguém ficou tão contente de me ver, nunca me fizeram uma festa tão grande só de me avistar. E no entanto estou sempre a dizer-lhe para não me saltar porque me arranha toda, e dou-lhe uma palmada quando resolve ir buscar uma meia nos dentes para me presentear a chegada. Sou uma bruta, isto de ter de a educar às vezes é duro, tenho de ser mais dura do que sou, senão tornar-se-á um desatino viver com ela. Agora, a olhar para ela e a fazer-lhe umas festas antes de irmos dormir, dei por mim a pensar que foi dos melhores conselhos que me deu, para arranjar um cão, e foi a melhor coisa que eu fiz. Mas, ao mesmo tempo, é um nó que aperta a alma, olhava para ela e pensava: se lhe acontece alguma coisa não vou querer mais nenhuma. Nenhuma será assim, nenhuma terá a história que já temos, por nenhuma mais vou dormir duas ou três noites no sofá da sala porque ela não se calava e não sabia ficar sozinha - ainda agora é um martírio... Depois desta não vou querer mais nenhuma. É uma chatice gostar-se de alguém. Roubam-nos partes que não sabíamos que tínhamos, trazem-nos dentro, recantos nossos que nos revelam e descobrem, como há tempos escrevi. Esta já é um recanto meu, doce e difícil, mas já é meu, não quero mais cantos meus desalojados de mim. Se tudo correr normalmente há-de a minha filha sair de casa e esta pintas ainda me ficar a roer as noites aos pés. E depois? Quando esta me abandonar também não quero mais nenhuma. É tão difícil arrumar recantos cheios de coisas nossas, coisas que gostamos, que cresceram em nós, que se fizeram nós. Nós que depois perdem o caminho do desatar. Serei assim em tudo? Quando encontro algo que sinto único trato-o como único? E não sei ainda como substituir únicos, só aprendi a viver sem eles. Não quero coisas únicas que fazem ninho em mim, quero o que não me entre dentro porque não sei deitar fora... A não ser, talvez, a vida. Essa deito fora para manter o que tenho dentro. É uma chatice e não serve para nada. Mas as coisas mais bonitas nunca têm utilidade, senão sentirmo-las bonitas e isso nos fazer sentido em todos os sentidos, menos no ter de ter um sentido.

2 comentários:

  1. Nunca houve numa «vida única» uma «afeição única»: e se nos parece que há casos em que houve é que essa vida não durou o bastante para que a desilusão e a mudança se produzisse, ou quando se produziu ficou orgulhosamente guardada no segredo do coração que a sentiu.

    Bom dia, Vi:))

    ResponderEliminar
  2. Eu parece-me que cada afeição é única, quando realmente nos afeiçoamos e apreciamos e admiramos alguém, isso é único e insubstituível, as pessoas por serem únicas são insubstituíveis quando nos relacionamos com elas enquanto pessoas, enquanto afecto que lhes dedicamos, mesmo que haja desilusões (e há até pessoas que são únicas na quantidade de desilusões que provocam ou na sua gravidade...). Sabes, Legionário, não consigo perceber as pessoas que trocam de afectos, como se tudo fosse descartável, substituível, houvesse um igual ao lado, ou se não igual que serve para o mesmo... Por isso a Pintarolas para mim já é insubstituível, não entendo as pessoas a quem morre um cão um dia e na semana seguinte arranjam logo outro (farão o mesmo com os amigos?)... não entendo, acho que então parece que nunca chegam a gostar realmente de nada, tudo é trocado com demasiada facilidade, há demasiado desprendimento. Agora com isto não quero dizer que não possa haver novos afectos, pode e até deve se calhar, por outras pessoas, por outras criaturas, mas esses terão de ganhar o seu sítio, conquistá-lo... eu é que às vezes já não quero dar oportunidade a perder mais coisas, percebes, às vezes o risco de gostar já me sai muito caro. Era o que eu queria dizer...
    Bom dia, Legionário :)

    ResponderEliminar