quarta-feira, 20 de setembro de 2017

[imagem do filme Pierrot le Fou, de Jean-Luc Godard]

"As respostas que dava a Diotima eram muitas vezes deste tipo. Quando ela falava de beleza, ele falava do tecido adiposo que suporta a epiderme. Se ela falava de amor, ele falava da curva estatística que indica as subidas e descidas automáticas da taxa de natalidade. Quando ela falava das grandes figuras da arte, ele lembrava a cadeia de empréstimos que ligava essas figuras entre si. Tudo começava sempre com Diotima a falar como se, ao sétimo dia da Criação, Deus tivesse feito o homem como a pérola que colocou na concha do mundo, ao que Ulrich lhe lembrava que a humanidade era um montículo de pontinhos sobre a crosta de um globo anão."

Robert Musil, in O Homem sem Qualidades

Oiço muitas vezes que as pessoas não comunicam, e acho que será verdade, mas muitas não comunicam porque os diálogos são afinal monólogos à vez de dois egoístas, e um egoísta tem muita dificuldade de sair do seu próprio umbigo para seguir as palavras até ao outro. Quando dois egoístas falam, nenhum ouve o outro, nenhum ouve para entender o outro, mas tão somente para responder-lhe, e responde do alto do seu umbigo, claro. Curiosamente, se apenas um for egoísta a comunicação dá-se, num sentido; há alguém que entende e alguém que é entendido, há um que sai da sua pele para tentar entender o que estará sob a pele de quem quer entender (é preciso isto, aliás é fundamental, querer entender, conhecer, decifrar o outro), mas nunca as posições se alteram, até ao ponto, até ao extremo, em que um pensa entender o outro e o outro nada sabe de quem o ouve, de quem segue religiosamente as suas palavras até ao seu eu, onde o procura beber ao mesmo tempo que lhe mata a sede, quem o vai vendo e desvendando. E o paradoxo aqui é irónico, quem nunca dá nada, quem nunca se afasta um milímetro de si mesmo e das suas razões, e da sua vida, dá-se inteiro, entrega-se sem saber, porque lhe amparam o ser, porque o ouvem, porque o vêem. Quando deixarem de falar, só um perde - o que me lembra uma frase antiga duma blogger que lia muito "perde sempre mais quem dá menos"... e é tão verdade.
A comunicação não é dizeres palavras a alguém e esse alguém te responder com palavras. Comunicar, conversar, é tentar fazer alguém entender o que pensas ou queres ou sentes, é fazeres chegar ao outro um pensamento, vontade ou sentimento. Do lado de quem ouve a intenção não é meramente ouvir, mas tentar perceber o que lhe querem transmitir, é muitas vezes seguir as palavras que ouve até à boca que as proferiu e daí para a pessoa que nos tenta dizer algo, com a cabeça ou com o coração (ou da confusão das duas). A comunicação é a ponte onde dois que se querem encontrar se encontram, nem sempre a meio caminho, nem sempre sem algum esforço, é certo, mas é onde ambos têm de entrar para se poderem aproximar do outro, sem isso, são apenas dois loucos, cada um em sua margem a ganhar raízes, a berrar para o vazio e a ouvir o seu próprio eco.

A comunicação quando existe, às vezes nem precisa de palavras, porque a comunicação é entender o que o outro nos quer fazer entender. E tantas vezes as palavras soçobram, outras ainda, apenas estragam.

4 comentários:

  1. Apenas ouvimos o outro se o quisermos. Se queremos dar(nos), devolver algo também. Quando apenas vivemos para nós, para o que precisamos, para o que nos faz falta, nunca olhamos a outra pessoa ;)

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  2. Sim, verdade, é preciso querer perceber o que se ouve, chegar ao outro como digo, o que não acontece se só pensarmos em nós mesmos... Daí dois egoístas não comunicarem. ;)

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  3. "A comunicação quando existe, às vezes nem precisa de palavras, porque a comunicação é entender o que o outro nos quer fazer entender."

    Nem mais!!!

    Bom dia, Vi:)

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  4. É, às vezes é, noutras nem o melhor discurso os faz perceber...
    Bom dia, Legionário:))

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