O despertador tocou, maldito, como todos os dias que o corpo tinha de obedecer ao carrossel diário. Era o telefone que lhe servia de despertador - hoje em dia serve de tudo -, quando lhe pegou para o calar viu o post-it amarelo "bom dia, dorminhoco noctívago. Levanta-te, seu preguiçosão, mas antes abraça-me com braços de telepatia só um bocadinho bom". Riu-se, ela era assim meia tonta de doce, meia doce de tonta. Talvez fosse por isso que gostava dela, nunca soube porque gostava dela, mas sempre soube que gostava, não havia ponta de dúvida que lhe ensombrasse isso. Gostava e ponto final. Porque sim - a melhor razão do mundo para amar alguém, se não tem uma razão para gostar também nunca a pode perder. A razão é uma coisa que se perde, ou se esquece, ou se arranja melhor... o porque sim, não. Levanta-se, vai para a casa de banho, dá de caras com o espelho cheio de post-its, com frases deles, coisas parvas que se tinham acumulado em risos ao longo dos anos, aquela mania dele de querer parecer que se achava o máximo "eu cá só me encostava ao balcão e esperava, mas pouco", " eu cá sou bom, sou muito bom, sou o maior!!... Vá, canta lá em frente ao espelho". Depois, no meio de tudo isso, leu "muita tontice mas és a minha coisa boa, se aí estivesse ficavas lavadinho que era um mimo, toca a tomar banho, seu porquicho"... e ele a pensar se sorriso malandreco colado aos lábios, onde raio ela ia buscar ideias para fazer tanta parvoeira, mas que as parvoeiras dela sempre o faziam rir, e ao longo destes anos tinha sempre arranjado maluquices diferentes, em dias diferentes que ele não esperava, ou em datas lá deles, ou neste dia. Não sabia onde ia buscar as ideias, ele nunca se lembrava de fazer coisas assim, às vezes começava a pensar mas nunca lhe parecia surgir nada que ele achasse giro fazer... mas ficava sempre cheio de vontade de lhe mostrar que a queria sempre no sempre. Às vezes não sabia se ela sabia. Tomou banho com sorriso que lavava a alma, vestiu-se, correu para a cozinha, na sua caneca de pequeno almoço, em que pegava todos os dias, estava outro, dizia "bebe-a devagar, alimenta-te, que eu logo como-te mal te apanhe e encho-te de mimo depois. Vem para casa mal te consigas despachar. Beijo. Adoro-te". Ele despachou-se, tinha um dia fora de casa complicado, mas ia na vontade de voltar depressa, de a agarrar, de lhe dizer que sim, que também era assim com ele, dizendo-o sem abrir a boca. E ela entendia, às vezes ele sentia que ela entendia perfeitamente. Agarrava-o na medida certa desse entendimento, os beijos transbordavam de intimidade e cumplicidade só possível a quem está nessa sintonia plena. Antes de fechar a porta olhou de relance o hall de entrada, logo, se entrassem juntos, iriam prender-se ali mesmo, durante um bocado, enquanto os corpos matam saudades um do outro, e de se sentirem completos, plenos, quentes, de conversarem como se sempre tivessem sido mudos, enquanto as bocas se procuram e se encontram em beijos, em pele, em silêncio que geme de prazer e vontade. Fecha a porta, dá a volta à chave, corre ao café por baixo de casa para um café forte, quando o viram entrar já o estavam a tirar. Dá os bons dias, desfolha rápida e despreocupadamente o jornal, bebe o café em pé, pega nos óculos escuros e procura no bolso moedas para pagar, os dedos encontram um papel, tira-o e era um papel pequeno, imprimido com a fotografia que ele mais gostara da brincadeira do ano anterior, as pernas dela. Por trás estava escrito "até paradas correm para ti, para te envolver, para te abraçar, para te prender. Não me fujas" de repente viu uns olhos à sua frente, por cima do bigode, muito abertos a olhar para ele e para a fotografia que ele virara para ler o verso... Pagou e foi-se a rir com a cena até ao carro... Tinha de arranjar uma coisa gira para logo ao fim do dia, não podia ser só ela... Mas o quê? O raça da miúda tinha sempre ideias tão parvas que desaconselhavam competição...