sábado, 5 de janeiro de 2019

“A vantagem de envelhecermos, pensava Peter Walsh, saindo de Regent’s Park, com o chapéu na mão, era simplesmente esta: que as paixões permaneciam tão fortes como sempre, mas nós adquiríamos - por fim! - esse poder que transmite à vida o seu supremo sabor - a capacidade de nos apoderarmos da experiência e rodá-la, devagar, diante da luz.
Era terrível confessa-lo (tinha voltado a pôr o chapéu), mas agora, aos cinquenta e três anos, já quase dispensamos as pessoas. A própria vida, cada momento seu, cada gota, aqui, neste instante, agora, ao sol de Regent’s Park, era o suficiente. Demasiado, até. Uma vida inteira era demasiado curta, agora que alcançamos esse poder, para dela retirarmos o pleno sabor, para dela extrairmos cada grama de prazer, cada cambiante de sentido; agora, que prazer e sentido se tornavam muito mais sólidos, e mais impessoais, do que haviam sido até então. Era impossível que ele voltasse a sofrer como Clarissa o tinha feito sofrer.”

Virgínia Wolf, in Mrs. Dalloway

Rodarmos a experiência nas nossas mãos - como algo nosso, mas que cabe fora de nós o suficiente para a rodar à luz, para lhe ver as rugas, os defeitos e as intemporalidades perfeitas. Para, apesar disso, o relativizar no tempo, e do tempo. Para com isso todo o tempo saber melhor, saborear-se melhor, ser tempo melhor. Quase não precisar de pessoas - para isso, para ir ao tutano de cada instante. Para isso ser suficiente, para parecer até demasiado, às vezes; para sabermos como não voltar a sofrer como já sofremos, para sabermos segurar cada experiência nas mãos com um olhar honesto mas acutilante, justo mas egoista, que temos sem o esforço de o procurar... para uma alma bastar e ser a nossa, inteira. Queria isto tudo, mas antes dos cinquenta três se faz favor... se bem que se essa for a idade para os homens, pode ser que haja esperança... dizem que as mulheres costumam entender a vida mais rápido que os homens. Se calhar. Nao sei. Sei que esta clarividência me dava um jeitão na prática da vida. Só vos digo. E se lhe reconheço os contornos, falta-me segurá-la nas mãos. Ou a luz.

(mas na verdade, agora que penso nisto, depois de escrever o que escrevi, o que eu gostaria era da oportunidade de poder vir a ser tão magoada como já fui. só da possibilidade disso, obviamente. porque então estaria intacta a minha capacidade de entrega e de amar. de sofrer também. só se aprende a não sofrer demais depois de ter sofrido demasiado)

2 comentários:

  1. "só se aprende a não sofrer demais depois de ter sofrido demasiado"
    Pois é Vi, esta tua frase diz quase tudo...embora na nossa existência o "sofrimento" acompanha-nos até ao final da vida.

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  2. É verdade haverá sempre sofrimento, como haverá sempre alegria, mesmo que nas pequenas coisas (ou principalmente nestas), mas as duas são proporcionais à tua capacidade de entrega e de amar...
    Bom dia, Legionário :)

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