E ele dizia-lhe naquele tom entre meio rouco e aveludado, banhado em cores de por do sol melancólico e dum calor aconchegante "não houve dia nenhum em todos estes anos que não me lembrasse algumas vezes de ti, se me distraía, qualquer coisa tua me invadia." E ela a pensar nos negativos - o preto que é branco, o branco que é preto -, enquanto ele lhe perguntava o mesmo. Abriu bem a boca para lhe desenhar um belo não com que se vingar, e cerrar em si a verdade que era só dela. Não, não pensou às vezes nele em cada dia de todo este tempo. O resto da frase, a razão dos negativos a assaltaram-lhe o momento de ironias, essa ela calou-a. Ela, que só deixava de pensar nele quando se distraía - quando ele por momentos não lhe era pele nem desejo nem memória nem sorriso anónimo de razão -, nessas alturas que ele se ausentava dela, até a saudade recolhia. Ela distraía-se e o mundo fugia-lhe do bolso de dentro da existência, onde vivia o negativo da sua vida, e então caía aos rebolões no mundo que todos habitam e onde se trabalha, e se finge que até se vive. E eu distraí-me menos do que deveria todos estes anos- conclui ela no silêncio que guarda as verdades cruas.
E ele a olhar para ela e para aquele redondo "não" sem saber se o "não" seria o negativo de si mesmo, mas ela não lho revelou nunca, ainda que houvesse tanta química reveladora. Mas onde ela se prendeu, o prego que lhe pendurou a alma, foi perceber que onde ele era sim ela era não, onde ela era só ausência ele era sempre presença - só quando se distraía não pensava nele, ele apenas se lembrava que ela existia quando se distraía... não era justo, eram o negativo um do outro, e positivamente isso não era uma boa fotografia.
Sem comentários:
Enviar um comentário