domingo, 15 de agosto de 2021

 Ainda não sei fazer isso de inverter os papeis, de ser o porto seguro das minhas fortalezas, mãe dos meus pais. Como se ainda não os visse indefesos, ou o meu olhar recusasse essa realidade. Ajudo, estou, mas é preciso mais qualquer coisa que não sei dar, ou talvez não tenha. Fiquei sem reacção, sem resposta que soubesse dar, já não iríamos tomar café como combinámos, estar um bocadinho na conversa numa esplanada qualquer a entreter o tempo, a aproveitar o tempo, faltavam-lhe as forças, até na voz... e a minha desapareceu também, assim, ao sentir-lhe a falta, ao sentir-lhe as lágrimas disfarçadas a queimar-me por dentro etapas e tempos, anos, encurtando esperanças, amputando ilusões que ando a roubar à lucidez dia após dia. Desligámos e desfiz-me, não conseguia segurar um pensamento, nem conter nada, os soluços abanavam-me como senhores duma realidade que recuso, como se algo tivesse libertado marés de tempestades por dentro. Tempestades de revolta, de raiva, de impotência, de solidão. Vi o meu pai chorar três vezes na vida, recordo-me delas como se agora lá estivesse de novo. A primeira de cansaço e impotência face à crueldade e exigência da vida, outra pela perda da sua fortaleza mágica, e à beira do caixão do meu irmão, depois de dois meses sem o poder ver no hospital, o choque de o ver ali, assim. E hoje que não vi, mas senti. Há coisas que simplesmente não sabemos sentir, não conseguimos conter, domesticar, controlar. Agarram-nos pelos dois braços, pelo cabelo e pelas pernas e arrastam-nos rumo a um abismo conhecido que nunca experimentámos. Depois, esgotamos o que houver a esgotar, levantamo-nos e vamos, quase como se nada fosse, estar, fazer conversa que não temos, inventar o que não somos, mas somos, temos de ser - um porto seguro que não se segura. E aos poucos forçamos uma espécie de normalidade que se nos cola à pele e nos convence, as coisas podiam estar piores, foi só um dia de fraqueza, de todas as fraquezas e cansaços. O coração falhou vários compassos, o medo instalou-se nas veias, mas continuamos aqui. Tu meu pai, eu tua filha. Coisa que não mudará nunca, não há realidade que leve essa magia.

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