domingo, 23 de maio de 2021


[ in "O Vício dos Livros", Afonso Cruz]

 ... afoga dias inteiros em sonhos, também.
(sei eu e acrescento sem dar conta, e depois aqui)

Por vezes quero só esquecer-me da vida, suspendê-la, pendurá-la num prego onde o meu tempo não passa. Nas últimas semanas começa sexta feira, a sair do Porto, começo a desligar. Não me quero lembrar da vida, vou respirando como quem não pede tempo emprestado, como se o tempo não medisse nada e nada me fosse. Como se não me visse, ou eu a ele - mas eu vejo-o, e bem, quando olho a minha filha e o espelho, onde não sorrio e os olhos não me aparecem. Não pego no computador da empresa a não ser que haja uma emergência, ou algum trabalho demasiado urgente - e tenho classificado cada vez menos coisas como urgentes. O fim de semana passou a ser o meu tempo suspenso - que passa, bem sei -, mas onde o mundo é uma coisa qualquer lá fora que quero pouco. Resume-se às idas ao supermercado e a casa dos meus pais. Já nem café tenho ido tomar como sempre foi meu ritual de fim de semana, para ver gente, para respirar um tico de mundo, para ler numa esplanada ou só olhar o que imagino estar lá. Desde que me separei que o fazia sozinha, ao início ia com a miúda, que adormecia no carrinho ou ao meu colo enquanto tomava café e observava o mundo. Observava o mundo que não era meu, e na altura acho que o pressentia, mas ainda não o sentia. Agora não sei se é a preguiça que me vence, se foi o confinamento que me ganhou e se entranhou, não sei, não tem apetecido. Tomo café em casa, às vezes com um livro, às vezes na varanda, quase sempre com um canídeo por perto, muitas vezes com todos. Desta vez, a pequena "ninja" parece querer saber de livros, ou de poesia, e espreita-me, com o pai esticado um pouco atrás, a mãe aconchegada perto dela, e eu num mundo meu, que cada vez mais me custa deixar segunda de manhã, onde pareço largada e abandonada à minha sorte (que é pouca, digamos), cercada por gente que não é minha, armadilhada em teias que não teci. Nunca fui boa a separar as áreas pessoal e trabalho, aliás como tantas outras áreas que as pessoas conseguem separar, e eu não, tenho muita dificuldade, sou só uma, e acho estranho que consigam tão bem dividir as águas. Se eu sou o que sou, sou-o sempre em todos os lados, não tenho botões que me desligam partes, se gosto de alguém gosto, se não gosto não consigo gostar, posso trabalhar com ela, reconhecer-lhe até competências, mas não gostar., e isso é tratá-la de modo diferente de se gostasse. Não consigo separar as águas e é por isso que prefiro esquecer a existência dos dias da semana, desse outro mundo onde eu inteira tenho de morar mas onde me recuso viver. O pior de tudo isto é que o recomeço, o reabrir a porta, custa mais. É o preço que se paga por suspender momentaneamente a realidade por não saber recortá-la à medida das minhas necessidades.

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