quinta-feira, 26 de abril de 2018




A caminho de cá vinha a pensar, tenho de fazer uma lista de tudo o que gosto de fazer, que me dá prazer, e dedicar-me a praticá-la. Ler. Ler em esplanadas ou na minha varanda ao sol. Tomar café depois duma caminhada com a tracção às quatro. Brincar com as palavras e às vezes escrever coisas que me tiram peso de dentro ou só que me aligeiram os dias em sorrisos parvos. Ir à praia sozinha, ver e ouvir a lareira enrolada numa manta. Ronha, dormir até tarde, desdenhar do sol do lado de fora da janela. O céu estrelado do Alentejo num alpendre à noite, as estrelas cadentes a rasgarem o quotidiano do olhar, talvez um copo de vinho e uma vela a tremeluzir no chão em sombras dançantes. As estradas ladeadas de árvores, curvas que desenham os contornos da terra e me fazem deslizar colada às curvas e ao chão, como se o carro lhes pertencesse, e eu também - e ser um com o caminho, sentir ser, também, aquelas curvas que se curvam comigo dentro, mãos no volante que conduz a curva sendo por ela conduzido, recurva-me a boca em sorriso. Sim, conduzir também, de manhã deixando os olhares apanharem boleia da serenidade das garças - rir-me da lembrança de ter  brincado com as palavras e ter publicado um dia "campos engarçados" -, e passear o carro à noite pela cidade,  entre as luzes da vida dos outros em casas que se iluminam, soltar as rédeas aos pensamentos bravos ou tranquilizar os medos selvagens enfrentando-os, conversando em sussurros maliciosos. As gargalhadas que às vezes faço rir a quem gosto, jantar com as minhas pessoas, as que gosto e gostam de mim, que me cosem a alma esfarrapada ou me fazem rir, ou me remendam a alma fazendo-me rir, velar o sono da minha filha, sentir a paz que já não sinto, o encostar-me ao meu irmão, às vezes, tão raro. Tão raro poder ser pequena outra vez e esperar que me protejam. Que me amem.
Tudo sozinha, vejo agora. Deixei-te fora de tudo de propósito, e no entanto, cada coisa que faça, estás lá. Como se eu estar sozinha fosse coisa tua, fosse uma maneira de estar contigo, talvez a única. Porque só sozinha posso estar contigo. Gosto de estar sozinha, mas não quero estar sozinha contigo, por causa de ti. Quero estar sozinha se não houver ninguém que me faça melhores os dias acompanhada. Até lá tenho uma lista grande de coisas que gosto para ir fazendo e não me lembrar que gostava de mais coisas. Algumas, se calhar, não sozinha. Outras sozinha, sempre sozinha, porque assim me sinto menos só, e porque gosto de estar comigo, não tenho medo de me descobrir, de me ver, de me saber. 

4 comentários:

  1. ☺️ é lindo o teu texto e nem me atrevo a comentar (apenas acrescento que entendo).
    Ainda assim, e apesar de tudo, só, no meio da multidão é um bom lugar.
    Beijo

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. :) obrigada, Mafy. Prefiro a solidão sem o ruído da multidão, fazem número mas não acrescentam. Prefiro o sossego ou a companhia que nos afasta a solidão... aqueles a quem costumo chamar as minhas pessoas ;)
      Beijo para ti :)

      Eliminar
  2. Confesso que tenho saudades de ver estrelas cadentes, pois por aqui há mais estrelas decadentes;)

    Bom fim-de-semana Vi 😊

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Ahahah... há por aí muita coisa decadente, mas poucas serão estrelas (ainda que algumas se pensem estrelas)...

      Bom fim de semana, Legionário:)

      Eliminar