Há dias que aqui não vinha ao encontro da solidão, não me apetecia endireitar as ideias nas palavras, deixei-as marinar nos dias e se calhar deixá-las assentar, ou tentar que a vontade de as formular me invadisse. Agora, aqui sozinha, já noite fechada, no alongar da ponte do fim de dia para a noite, naquele indeciso teimar de deixar anoitecer-me, entretenho-me a desfiar o tempo em palavras. Queria que me tentassem entender como quem ouve por dentro dos meus ouvidos, não queria que se preocupassem em responder, menos ainda que se defendessem, porque o que digo não é para atacar. Não é sequer conselhos que procuro, é ouvidos que queiram compreender, sentindo o lado de cá. Queria, talvez, que percebessem o que se sente quando se ouvem certas coisas e dentro temos um gostar por quem as diz a acolher palavras que parecem bater como portas na ventania. E oiço portas bater por dentro da armadura dos ossos, aqui sozinha, entre o final do dia e o entranhar da noite, numa solidão que não me amarga. Há dias num jantar, em conversa, disse isso, acho que, apesar de tudo o que tem sido a minha vida nos últimos anos, não amarguei... tenho talvez feito o esforço de me relembrar que não o quero, que isso é deixar ganhar a morte, a tristeza, e, sim, a maldade de quem não vale ( e nunca ninguém vale) o desperdício de vida... mas não sei se endureci. Deixei cair os sonhos e deixei a realidade da terra, do chão que nos colhe na queda, plantar-se nos pés, entre os dedos, debaixo das unhas, emaranhada nos cabelos, nos intervalos dos quereres, das vontades e dos ideais cujo fogo a terra abafa, onde a inércia se planta e cresce fulgurante no embaçamento dos dias. Dizem-me fechada e exigente, acho-me tão fechada como dantes, apenas mais descrente, e talvez por isso, muito menos exigente. O que dantes era tábua rasa, agora é quase bónus, ou, pelo menos, não é encarado como corriqueiro, como inerente à partida. Aprendi que nem todos os que parecem gostar gostam, e que nem todos nos consideram e respeitam nos níveis mínimos da reciprocidade. Aprendi, ensinaram-me à força, a sentir-me pequena mais vezes, mas em contrapartida a aceitar isso docemente como meu tamanho real no mundo - e que o mundo pequeno em que vivemos despidos na quimera do aconchego não é sempre tão diferente do grande e frio onde nos movemos sob defesas. Às vezes é a mentira que aconchega, até chamarmos de mentira a mentira. Depois o mundo deixa de ter tamanhos.
Bom, fumar mais um cigarro... agora descartado de palavras.