... às vezes acontece-me surpreender-me num espelho inesperado e não me reconhecer logo, como se a imagem que os outros vêem de mim - quando a vejo -não pareço eu.
Eu, que me vejo só no avesso da pele, em pensamentos que se falam para dentro, em coisas que não saem desta caixinha que é o corpo, que guarda a alma e a expande com todos os sentidos da pele, tudo aquilo que nos identifica como pessoas e, principalmente, para nós mesmos - aquilo que não se vê.
É como com a voz, quando ouvimos a nossa voz gravada nunca parecemos nós - ou melhor, nunca nos parece a voz que temos por nossa. A mim, com o corpo, com a aparência, acontece-me o mesmo. Acontece-me olhar para um espelho fora da órbita normal, ou fora da órbita da minha atenção, e, quase em sobressalto, dou conta que sou eu. Muitas das vezes a surpresa não é boa, mas essas vezes curiosamente não me chocam muito, já as outras sim. E hoje aconteceu isso, com a luz rasa de fim de dia, com o sol já a abraçar o horizonte, com aquela luz dourada que acalma o meu próprio horizonte, dei pelo reflexo de mim no retrovisor do carro. E gostei. Gostei da cor, gostei do cabelo caído em desarranjo, gostei da simplicidade do fio que tem a esfera precisamente numa covinha que gosto - havia um filme que me marcou, um dos filmes da minha vida, que falava precisamente nessa covinha, não naquilo que alguém chamava de saboneteiras, também elegantes, entre o pescoço e os ombros, não, era aquela covinha singela de que ele não sabia o nome e não sabia como seria possível um lugar tão bonito de feminilidade não ter nome, e que no filme ele reclamava para ele. Nunca me esqueci da covinha do filme do paciente inglês.
...Gostei de ver a imagem do espelho e afinal era eu. Curiosamente era eu, estranhamente era eu. Não que fosse uma imagem muito bonita, ou marcante, ou de assinalar, só me surpreendeu ser eu. Havia qualquer coisa que eu gostava ali, e que depois, analisando mais atentamente, era algo tremendamente meu, e melhor que isso, eu gostei dela... a simplicidade, a pele nua, as orelhas despidas, o cabelo despreocupadamente caído com a espontaneidade do momento. Muito eu, e incrivelmente, era mesmo eu, acabei por registar o mais próximo da imagem que vi no retrovisor, porque me passou tudo isto pela cabeça. Porque às vezes não me pareço o meu corpo e não me reconheço nele. Outras sim, outras ainda, depois de o reconhecer meu, gosto, pelos motivos mais estranhos, nas alturas mais improváveis, como ir há dias de jipe (sim, acho que sou mesmo mocinha de jipe, ando a pensar cada vez mais nisso e na quantidade de coisas que eu não tinha descoberto de mim), com o meu irmão, acabado de chegar, ao supermercado da vila a uns Kms de distância.
Gostei. Estranho, hum?
Bom dia!