A memória já não tem o cheiro a tinta fresca. E não me lembro de me aperceber disso antes de agora, cheirava sempre como quem tinha acabado de ser pintada, cheiro a novo, hoje, ontem, há anos, sempre. Não agora, não este hoje. O luto parece que já as faz descascar e despir da sensação do agora, espalham-se os restos pelo chão que se arrasta já debaixo dos pés. Quase dois anos afinal - para muitos, mais que suficiente para deixar morrer gente que não queremos deixar viva em nós, e aquela cena, quase banal, da série das últimas noites, fez-me disparar entredentes e sem dar conta... “já não sei o que isto é”... e não, já não sei, e já nem consigo lembrar com as cores todas, com tudo, com o agora na pele, com o ainda aqui, com o já da urgência que já se viveu. Não, já não cheira a tinta fresca a memória, tão cheia de memórias que se perdem em momentos perdidos. Já nao cheira a vida viva. É o luto, é o luto que já não luta, aceita e entrega-se ao desfiar do tempo, das cores, dos sentidos, ao já não saber o que é sentir no agora, um agora que ficou sem passar durante tanto tempo, e que afinal nunca foi. Já não sei o que é viver, estar, mergulhar, naquela sensação. Navegá-la, mergulhando a alma inteira. Se tiver sorte, nunca soube, e quando o souber, não quero sabê-lo sozinha. Para o saber realmente, não poderá ser.
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