sexta-feira, 5 de junho de 2020


Nosso amor é impuro 
como impura é a luz e a água
e tudo quanto nasce
e vive além do tempo.

Minhas pernas são água,
as tuas são luz
e dão a volta ao universo
quando se enlaçam
até se tornarem deserto e escuro.
E eu sofro de te abraçar
depois de te abraçar para não sofrer.

E toco-te
para deixares de ter corpo
e o meu corpo nasce
quando se extingue no teu.

E respiro em ti
para me sufocar
e espreito em tua claridade
para me cegar,
meu Sol vertido em Lua,
minha noite alvorecida.

Tu me bebes
e eu me converto na tua sede.
Meus lábios mordem,
meus dentes beijam, 

minha pele te veste
e ficas ainda mais despida.

Pudesse eu ser tu
E em tua saudade ser a minha própria espera.

Mas eu deito-me em teu leito
Quando apenas queria dormir em ti.

E sonho-te
Quando ansiava ser um sonho teu.

E levito, voo de semente,
para em mim mesmo te plantar
menos que flor: simples perfume,
lembrança de pétala sem chão onde tombar.

Teus olhos inundando os meus
e a minha vida, já sem leito,
vai galgando margens
até tudo ser mar.
Esse mar que só há depois do mar.

Mia Couto, in "idades cidades divindades"

[leio e releio e está tudo dito, ficando tanto por dizer. Tudo. Há coisas que por mais que se digam nunca ficam ditas. Tal como amar, quando o amor é impuro assim, de tão real. Come todas as margens, não conhece caminhos traçados, solve-se em todos os mares como um só, que é tudo. E nada.]

2 comentários:

  1. Esta frase deste poema de Mia Couto, diz tudo e mais alguma coisa:
    "E sonho-te
    Quando ansiava ser um sonho teu."

    Bom dia, Vi:)

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    1. Leio e releio e não me canso, como se comigo falasse de mim... gosto muito do poema.
      Boa tarde, Legionário:)

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