Ontem saio do trabalho, para que fui sem vontade diga-se, à pressa para comer qualquer coisa e seguir para o dentista, donde a miúda saiu com a boca a parecer uma trincheira de guerra, mas muito feliz com isso - quando eu pus aparelho não fiquei nada feliz, mas os tempos parece que são outros, e ela é muito diferente de mim... o que sendo uma coisa (muito, e eu sei) boa não há dia que não me faça maldizer o facto. Hoje dormi até mais tarde, coisa boa, mas sem ronha; levantei-me e levei a cadela ao veterinário... andava esquisita, e eu estava a ficar preocupada. Ao que parece está grávida, outra vez, mas desta só na cabeça dela - graças a Deus porque eu não seria capaz de passar outra vez por aquilo tudo, e ela é que teve dez filhos, mas eu é que dei biberon a todos, vezes sem conta, muitas de madrugada, lavei a cozinha dez vezes ao dia, e eu (nós, que não o fiz sozinha) é que enterrei seis deles, e não quero voltar a passar por nada parecido, fiquei exausta em todos os aspectos... então, agora, está com uma gravidez psicológica, e anda triste e ansiosa e esquisita, mas felizmente será só isso, e passa. No caminho pede e tem mais mimo, o que é não é mau. Voltei para casa, peguei no livro, tentei ler, larguei o livro, apanhei sol na varanda, queimei neuronios na televisão ainda à luz do dia, coisa que já não me lembro de fazer... e nisto tudo, muitas vezes durante o dia dei por mim a perguntar-me que raio ando eu aqui a fazer? Às vezes parece que os dias passam como quem queima fósforos, assim, uns atrás dos outros, sem acender o cigarro que se traz nos dedos, ficando só a olhar para os restos mortais, inertes e queimados do anterior enquanto se risca o próximo. Há dias em que lucidamente vejo o abismo a abeirar-se de mim, quase a envolver-me... e olho para o lado - não paro, só olho para o lado. Alguma coisa terei aprendido com certas criaturas...acho que se o ignorar ele não me vê. E todos sabemos que o perigo não é vermos o abismo, é ele olhar de volta para nós, porque vê-nos. E isso é uma chatice. Sempre que alguém, ou alguma coisa, nos vê realmente, é uma chatice. Nada de bom costuma vir daí. Pelo menos que eu saiba, que eu conheça. E várias vezes durante o dia me perguntei: o que raio andas tu aqui a fazer? E eu, que dizem ter resposta pronta para quase tudo, não sei responder. Não sei. Mas agora, aqui sentada no cadeirão da varanda, abraçada a uma manta amarrotada de tempos e memórias, que me aquece e me lembra do frio, rodeada deste silêncio nocturno, acho que não preciso de saber o que raio ando aqui a fazer, desde que ao menos goste de alguma coisa, alguma coisa faça sentido. Como este cigarro entre os dedos que queima o silêncio da noite que me embala em palavras mudas. E isso faz sentido em mim, pelo menos agora, já. Mesmo que não tenha sentido nenhum, e a pergunta continue sem resposta.