domingo, 30 de outubro de 2016

(foto @oxy.to.cin)

Caminhava despreocupada entre o formigueiro de gente que se movimentava como quem tinha um sítio marcado onde chegar. Parecia que só ela observava, só ela, andando, estava parada naquela engrenagem infernal. Viu um rosto que lhe lembrou alguém. Procurou nas memórias sem sucesso, não se lembrava quem aquela cara lhe lembrava, ou quem sabe, até seria. Sentaram-se numa esplanada, ele ao lado dela a olhar para algum lado que ela não via, que ela nunca via, e ele parecia nunca a ver, ou procurar ver para onde ela olhava, senão talvez se encontrassem. De repente lembrou-se: era a cara dum familiar afastado que não via há muito tempo, há muito que não sabia nada dele. Pegou no telefone ligou à irmã, descreveu-o, perguntou-lhe o nome. Desligou o telefone perplexa. Tinha morrido há vários anos, não podia ser ele, ou sendo, só o seu fantasma. Chegaram os cafés, ela aqueceu as mãos na chávena e por instantes fechou os olhos para aquecer o olhar. Quantos dos que se vêem serão fantasmas? Se não soubermos se morreram ou não, são gente como nós... pensou com um sorriso cego que lhe morreu nos lábios e que nunca ninguém viu. Quantos de nós já estarão mortos? Quantos saberão disso? Abre os olhos e, pela primeira vez naquele dia e não sabe há quantos dias, olhou-o nos olhos, disse-lhe: "era um fantasma". E ele, atónito, repete em pergunta: um fantasma? E ela sente um arrepio que vem da terra, que lhe sobe pelos pés, que chega à boca para lhe responder, respondendo-se a si mesma tantas perguntas por fazer que agora ali se respondiam, quase antes de feitas. 
-sim, morreu há anos mas não para mim porque não sabia... se calhar, se não soubermos, as pessoas não morrem, até as vemos noutras pessoas, ou então são fantasmas. As ruas podem estar povoadas de gente que já morreu e não se sabe, e, para quem não sabe, estão vivas ou é como se estivessem. Parecem vivos, mas são fantasmas. - semicerra os olhos, metade em desafio, metade com cara de miúda traquina, e acrescenta - "percebes?"
-que disparate... fantasmas?... só dizes disparates.
-disparate? Estás a olhar para um... morri para ti há anos e tu não sabes, nunca quiseste saber, talvez tenha morrido por causa disso. Morri para ti, mas o mundo nasceu-me, outra vez, agora.
Levanta-se e mistura-se na engrenagem do mundo. Deixa para trás aquela máscara, aquela armadura, aquela pele endurecida naquele tempo de vida que serviu apenas para chegar àquele momento, àquele arrepio, em que volta à sua pele, ao que é, ao que sempre foi. Desistiu de desistir de si mesma. Naquele momento regressa-se e reconhece-se. Por baixo daquele tempo e daquela pele sempre fora assim, ela, apenas andou anos a tentar esquecer-se porque ninguém se (a) lembrava dela.
Pergunta-se, enquanto se levanta, se saberão que agora ela está viva para o mundo?... que deixou naquela mesa os despojos duma pele e duma vida que não era sua, que já não queria, que não era ela, nem dela. Soltou-se para agarrar a essência. Não era um fantasma.

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