domingo, 30 de outubro de 2016




[foto @lovepaperplane]

Passava lá maior parte do tempo. Diziam, com toda a razão, que não jogava com o baralho todo. Nem percebiam sequer ao que jogava ou que cartas precisava ou quais lhe faltavam. Não conheciam os seus jogos, ela jogava com o baralho que tinha. Diziam que não era todo, que não estava completo. Tinham regras para tudo, até para o número certo de cartas, sem perceberem que depende do que se quer jogar. Ou se se quer jogar.
Quando não sabiam onde parava iam encontrá-la invariavelmente na estrebaria. Ultimamente passava lá dias quase inteiros, ou melhor, em todos os momentos inteiros do dia. Estranhamente saía de lá sempre com um sorriso de alma inteira e uma margarida a desenhar-lhe os jeitos do cabelo. 
Ela agora parecia dedicar-se a escovar um enorme animal, de porte majestoso, de pelo brilhante, de temperamento indomável, musculatura de campeão, altura de rei, mas que parecia gostar de ser escovado por ela enquanto ela falava, contava histórias, ria-se, gargalhava até. Andava para cá e para lá, alimentava-o, brincava, tinha medo dele, de cair, de ele fugir, de ele não sossegar para ela o escovar. De ele desembestar mundo fora, para longe da estrebaria onde ela se sentia segura - onde guardava as suas coisas, onde fazia casa -, de tão inquieto sentir ser o bicho. 
Ninguém percebia o que fazia ela tanto tempo naquela estrebaria vazia, sem vivalma, a falar sozinha como se não estivesse, a viver como se sonhasse outros mundos, a viver noutros mundos como se este não fosse sequer sonhado. Diziam que não jogava com o baralho todo, procuravam cartas onde ela via histórias, procuravam animais onde ela cuidava dos seus sonhos.

[sim, não jogo com o baralho todo, não é novidade e não foi por falta de aviso essa surpresa...]

Sem comentários:

Enviar um comentário