"Toco a tua boca.
Com um dedo, toco a borda da tua boca, desenhando-a como se saísse da minha mão, como se a tua boca se entreabrisse pela primeira vez, e basta-me fechar os olhos para tudo desfazer e começar de novo, faço nascer outra vez a boca que desejo, a boca que a minha mão define e desenha na tua cara, uma boca escolhida entre todas as bocas, escolhida por mim com soberana liberdade para desenhá-la com a minha mão na tua cara e que, por um acaso que não procuro compreender, coincide exactamente com a tua boca, que sorri por baixo da que a minha mão te desenha.(...) Então as minhas mãos tentam fundir-se no teu cabelo, acariciar lentamente as profundezas do teu cabelo enquanto nos beijamos como se tivéssemos a boca cheia de flores ou de peixes, de movimentos vivos, de uma fragrância obscura. E se nos mordemos a dor é doce, e se nos afogamos num breve e terrível absorver simultâneo do fôlego, essa morte instantânea é bela. E há apenas uma saliva e apenas um sabor a fruta madura, e eu sinto-te tremer em mim como a lua na água."
Julio Cortazar, in Rayuela
[sim, há coisas que se pudéssemos imaginar antes de as sabermos as imaginaríamos exactamente como viriam a ser. Ou assim achamos. Como tentar imaginar a perfeição. Tentar agora imaginar a perfeição é reproduzir com retoques o melhor de tudo o que se conhece. Quando a vida nos surpreende a imaginação explode, conquista territórios desconhecidos que não sabíamos existir, e todo um novo mundo se abre. Novas imaginações, perfeições mais perfeitas. Novos limites e novas dimensões de felicidade. E novas dimensões de infelicidade, por perdê-las, por desperdiçá-las, o que for. Aquilo que não se conhece é aquilo que não se é, mas aquilo que passamos a conhecer passa a ser parte do que somos, e de como descodificamos a loucura do mundo. Renegar isso não é não andar para a frente é andar para trás. Nada volta ao que era. Passamos a ser pessoas diferentes quando os nossos limites de imaginação, felicidade e infelicidade se movem. O mundo altera-se, nunca mais o vemos da mesma forma mesmo que nada tenha mudado, a essência alterou-se, a essência do nosso olhar sobre as coisas. E as coisas não são coisas são a maneira como as vemos. Um parafuso pode ser um deus (esta é de outra passagem do livro, mas estou preguiçosa), tudo depende do que vemos. E eu pergunto-me vezes sem conta o que verão quando me olham? ]
(porque me cruzei com este texto e o reconheci, fui ler o que tinha escrito sobre ele há alguns anos atrás. Não acabei o livro - Rayuela-, já não sei porquê, talvez porque seja dos que se mastiga devagar e precisa de tempo, mas de que nos fica muita coisa. lembro-me de onde estava quando li esta parte: num dos meus exílios passados num alpendre com vistas, em que choveu grande parte do tempo, em que fiz um amigo de quatro patas enquanto, debaixo de mantas, lia e escrevia, em que o tempo não me parecia parecia passar-me nas entrelinhas. Lembro-me que cheguei num dia de incrível temporal e cheias. A primeira noite foi passada à luz das velas, por falta de luz mesmo :)... hoje, este texto, esta descrição parece-me um bom hino, um bom presságio, um farol no caminho por navegar. UM cominho navegável. Um sorriso por sorrir que já desponta. Hoje que me lembrei que, há muitos anos neste dia, comecei a namorar com aquele que foi a minha primeira grande paixão. Roubou-me um beijo neste dia, a meio dumas escadas, sem aviso. a carteira que eu trazia ao ombro caiu (hoje apercebi-me de coincidências giras ao lembrar esta cena, beijos roubados e coisas a cair ao chão, ri-me sozinha) e a seguir caiu uma chuvada de que nos abrigámos na entrada dum prédio qualquer a caminho dum café. Nunca mais teve de me roubar nenhum beijo. Levei anos a curar as feridas dessa paixão, que anos depois se tornou uma amizade diferente, boa, gira, conversas em que falámos e ríamos, que eu mantinha com as distâncias seguras de quem não possui antídotos para certas pessoas... perdi-o numa curva que ele não fez, duma estrada qualquer. Lembrei-me hoje. E tenho saudades dele, e da paixão. E de se me destrancar tudo quando sou roubada do que descubro querer dar.)