terça-feira, 19 de março de 2019


Ontem vi um filme (é o que dá estar de molho, estou a ben-u-ron, pastilhas para a garganta, xarope, livro e filmes... tem de haver algum alado bom, né?) sobre um psicólogo que me fez lembrar algumas questões que volta e meia me põem a pensar. Milgram é o nome do psicólogo, e dedicou-se ao estudo do ser humano como ser social, ou seja a influência da sociedade - ou melhor ainda -, do grupo, no indivíduo, e nesta perspectiva o poder da autoridade e da obediência. Através duma experiência chegou à conclusão que 65% dos indivíduos aceitaram inflingir choques (supostamente, ninguém estava a ser sujeito a choques eléctricos, mas os indivíduos da experiência não sabiam) noutra pessoa porque lhes era dito que a experiência era assim, e que a responsabilidade, caso algo corresse mal, não seria deles. E com esta informação as pessoas (65% delas) continuavam a inflingir choques de voltagem crescente até atingir os 450 volts (voltagem que lhes era no início informado de que era perigosa), de forma consciente, ainda que visivelmente a contragosto, mas continuando a obedecer às regras duma experiência voluntária. Ou seja, não eram patrões, nem superiores, nem havia efectivamente nada que os obrigasse, a não ser repetirem-lhes que eram as regras da experiência e que eles não seriam responsabilizados. Só 35% das pessoas recusaram tais regras, levantaram-se e negaram-se a continuar a submeter choques a outro indivíduo, sem qualquer custo, risco ou castigo.
Quando pensamos nisto à luz do Holocausto muito é explicado - aliás Milgram é judeu e a escolha do seu tema fulcral de investigação não é alheio ao que se passou na II Guerra. Também já Hannah Arendt falava na banalidade do mal, mas ali, ali vemos gente como toda a gentes sem qualquer tipo de coerção ou risco, fazer a uma escala menor o que foi perpetrado durante a guerra a milhões. E, como se leva a concluir, basicamente com as mesmas justificações. Afinal cumpriam ordens, obedeciam a uma autoridade, até poderiam ser castigados caso não o fizessem (o que na experiência não acontecia). Na verdade nós deixamos de lado a moral e até o que pensamos e os princípios que seguimos face a algo que se apresente como autoridade, e como normalidade, como regra. E isto é tremendo. Onde fica a nossa cabeça? onde é que pensamos por nós? Onde é que deixamos de seguir os outros porque é suposto, porque é a norma vigente, ou porque representam autoridade, ou simplesmente porque "é a lei"? 
Se algumas vezes dei comigo a pensar algumas destas coisas, verdade seja dita, não tanto relativamente ao holocausto, ainda que não saiba dizer porquê, talvez porque todo o mundo, à excepção dos nazistas, concordava que era uma atrocidade. Ser contra não era ter de ir contra nada, era estar de um dos lados. Ser contra e ir contra tudo só sendo militar alemão e negar-se, opor-se, lutar contra, dizer "eu não faço". Mas recorrentemente penso, se tivesse vivido na época da escravatura, o que pensaria eu? Quando ainda não se falava ou pensava em abolir a escravatura, como veria eu a questão? Como pensaria eu, com tudo o que me rodearia na altura? Teria coragem de pensar por mim? E pensaria bem? 
Como será que eu teria reagido à experiência? tinha ido até ao fim ou tinha-me recusado a continuar a certo ponto? 
Sei que não sou cobarde ao ponto de culpar tudo e mais o que apareça por não conseguir o que quero, ou não fazer pelo que quero, não invento mil razões que me desresponsabilizem, não digo que fiz mal ou que deixei de fazer isto ou aquilo por causa do outro, ou porque a vida foi contra e eu nem tentei, isso acho que não faço, não me desresponsabilizo inventando desculpas, justificações para as minhas fraquezas. Mas quem serei eu na verdade numa questão destas? O que faria eu? O que pensaria eu? O que defenderia?
Só a mim é que inquietam estas questões?
Estaria eu nos 35%?

4 comentários:

  1. Querida Olvido. A história está carregada de padrões e imposições que afastaram o homem da sua própria essência. O que temos de fazer é, simplesmente, o melhor que podemos - assumindo-o. Essa é a nossa única responsabilidade.

    Um dia destes quer ao cinema ver um filme como deve ser?

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Caro Sr Impontual,
      Honra-me tal convite, pois claro que terei o maior gosto em ir ao cinema consigo :) (ao ar livre seria melhor ainda, que o tempo já vai parecendo querer deixar). Essa questão do filme como deve ser é que me deixou em cuidados... um filme como deve ser, é dos que nos fazem, ou deixam, a pensar, não é? é que eu gosto desses, mesmo que por vezes não goste nada das conclusões a que me levam.
      E fiquei cá a pensar se realmente alguma coisa afastará o homem da sua própria essência, ou se realmente a humanidade se divide entre quem prefere entregar a alguém a responsabilidade pelos seus actos e pela sua vida, e quem se recusa a fazê-lo. Que a essência seja essa e não mude muito, nem se negue, está só à espera da oportunidade para se revelar. A religião, as seitas e tantos afins, não serão também uma forma de o fazer? Talvez daí sempre a necessidade de alguém, acima de nós, dizer o que se deve ou não fazer, seguir esses mandamentos, e se correr mal nunca é responsabilidade do próprio... E a outra parte, minoritária, toma as rédeas da responsabilidade do que fazem e do que fazem sob a sua "liderança". E nestes haverá também muitas tipologias, certamente. Mas tenho dúvidas que fujam muito à sua própria essência - eu diria que é a única coisa de que não se consegue fugir, quanto mais se quer fugir, mais nos aproximamos, parece-me.

      Eliminar
  2. Não vivemos numa sociedade que se desresponsabilizou de tudo e mais alguma coisa? Sinto isso diariamente, seja em contexto trabalho, educação, familiar, etc
    Assumir é um verbo pesado para a maioria das gentes da nossa sociedade.

    Um beijo grande
    ps: desaparecida por causa de trabalho :(

    ResponderEliminar
    Respostas
    1. Sim, é verdade, mas aqui o que me pergunto é se eu, euzinha, a nível pessoal, individual, afinal também faria parte da maioria face à situação. Quando a experiência foi projectada e planeada todos os entendidos diziam que ninguém levaria o processo até ao fim, até aos choques de 450 volts, que todos se recusariam, e no entanto uma larga maioria fê-lo. Ou seja, dizer como faríamos e reagiríamos é muito diferente de estarmos perante a situação concreta. E isso assusta-me, o na verdade conhecermos e podermos afiançar muito menos de nós próprios do que pensamos à partida. Como aqueles que criticam tanto, sem cerimónia ou limites, e depois afinal até sabemos que depois fizeram pior, muito pior, do que criticaram tanto...
      Beijo grande também para ti e vê lá se não desapareces outra vez
      ... e menos ainda por essa razão ;))

      Eliminar