Milan Kundera, in A brincadeira
... uma imagem de nós mais real que nós próprios, uma imagem que não é a nossa sombra, mas sim nós a sua sombra.
O que será então mais real? Ou o que será real? A imagem que passamos ou o que não deixamos transparecer nessa imagem?
Tenho sempre, e sempre tive, a ideia de que o que somos é muitas vezes - a maior parte, provavelmente - o que não mostramos, não para enganar ou para parecer ter o que não temos ou somos - porque isso seria um projectar duma imagem demasiado arquitectada -, mas para nos protegermos.
Acho que se nos habituarmos a viver só a imagem que damos quase esquecemos o que somos, tornamo-nos uma sombra do que se quer parecer e às vezes convencemo-nos de que somos assim. Porque achamos que o devíamos ser.
Eu achei durante muito tempo que para gostarem de mim, para não desiludir ninguém, eu tinha de tentar ser uma mulher modelo, aquela que tem uma casa impecável, que dá, ou tenta, dar tudo de si para que a pessoa que tem ao lado seja feliz e viva como gostaria, tentar ser uma boa mãe, e parecer que tudo isso me fazia, também a mim, feliz. Não fazia. Não fez. Nunca fui uma mulher modelo ou o modelo de boa mãe, mais do que ter a casa aprovisionada e arrumada, eu gostava de ler, de pensar, de conversar, de passear-me quieta. E de escrever, o que deixei de fazer uns tempos antes de casar. Porque havia coisas mais importantes, achei. Mas somos o que somos, e tudo o que sou veio ao cimo de tudo isso. Preciso de escrever, tenho fome de conversar o que me faz pensar, sou desarrumada, e terrível dona de casa. Adoro mimo e sofá e silêncio com quem me sinto una e nua - sem medos nem vergonhas. Sou desorganizada mas preciso de lógica e de entender, de percorrer o fio entre a causa e o efeito. Mas sou também o que me fez viver como se fosse a imagem do que queria ser, sou a sua causa - e sou muito, muito disso. Talvez ainda, ainda que muito menos. E agora, ao menos, sei que há coisas que não me conseguem fazer feliz. Mesmo que tente.... e agora acho que felicidade não é tentarmos, a todo o custo, moldar-nos a ela, fazê-la, é ela moldar-se a nós, colar-se a nós sem que sequer notemos a tempo, é uma coisa que simplesmente acontece. Talvez depois do acaso de conhecê-la, só nos caiba o caso de mantê-la.
Hoje não sei que imagem passo de mim, não faço ideia. A imagem que se passa talvez mude, eu estou igual, na essência, no fundamental. No que sou e serei. Até no que fui.
[resgatado dos rascunhos, ainda do Kundera na sua Brincadeira...apeteceu-me depois do Impontual o "Nobelizar", aliás, Impontualizar, e bem, parece-me :) ]
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