terça-feira, 6 de setembro de 2016



"Acordar não é de dentro.
Acordar é ter saída." - João Cabral de Melo Neto
[livro: um rio chamado tempo, uma casa chamada terra, de Mia Couto]

Cheguei ao terceiro capítulo, de que me agrada o título, e fico parada em frente a estas duas linhas - que em vez de me acordarem me fazem sonhar significados que nunca pensei - "Acordar é ter saída", "não é de dentro". Talvez seja verdade, talvez acordar não seja uma coisa de dentro, talvez seja uma coisa provocada, filha dum gatilho qualquer.. Talvez uma saída. Talvez. Mas há o acordar por ser acordado e há o acordar sem chamamento de fora, o abrir os olhos porque o sono se esvaiu.
Mas numa coisa parece haver razão. Quando vemos saída, de repente vemos tudo de forma diferente... Como se acordássemos dum sono dormente, indolente, e quase doente às vezes.
Mas, antes de chegar ao fim do segundo capítulo, tropecei nestas:

 " em África os mortos não morrem nunca. Excepto os que morrem mal. A esses chamamos de 'abortos'. Sim, o mesmo nome que se dá aos desnascidos. Afinal, a morte é outro nascimento."

A morte é outro nascimento - talvez, mas nem sempre -, como a cada não corresponde um sim - mas sempre e em todas as vezes neste caso. É como o seu reverso, já a morte nem sempre tem reverso correspondente. A uma morte não corresponde sempre uma vida ou um (re)nascimento. Infelizmente.
...Depois uma palavra inteira, completa, que não existe e ainda assim me faz sorrir. Há palavras que nos fazem sentir o que dizem, mesmo que não existam. Sensação tão familiar para mim... Palavras que fazem sentir e sorrir, mesmo que em verdade não existam, nunca tenham existido, no que descrevem ou falam...

"Vamos rompendo entre a enchente, espremidos um contra o outro como duas pahamas, essas árvores que se estrangulam, num abraço de raízes e troncos. De encontro ao peito, sinto os seus seios provocantes. Provoquentes, diria meu avô Mariano."

Há certo tipo de provocações, conscientes ou não, que são sempre quentes. E eu gosto dessas. Não gosto das provocações para sentimentos frios, para esfriar o outro, rebaixar o outro, humilhar o outro. E estou farta dessas. Gosto das provocações quentes, mesmo longe, que aquecem, que acendem, que provocam o que de bom se pode ter só de pensar em alguém. Físico ou não, de pele ou de alma. 'Provoquente' é uma palavra inteira, completa de significado, para mim. Só que não existe. Como a palavra "amorar", tão bem inventada, tão nada sentida. Como tanta coisa, como abortos que nunca nasceram, nem sabem morrer. Que não encontram reverso.

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