domingo, 10 de novembro de 2024

 

Ontem acordei afónica.. assim, sem mais. Sem grande aviso, ou previsão. Sem dores ou febre, tudo o resto normal. Como tantas vezes, vendo de relance tudo parece normal, e não está, não é. Queria falar e as palavras não se ouviam. Passado umas horas quase tinha passado.  Quase.  Ontem não saí de casa fiquei a acalentar a garganta arranhada, sem saber o que a arranhava ou se acalentá-la seria solução, ou vantagem sequer. Vi não sei quantos filmes, fiz pagamentos, tentei pôr umas coisas em ordem, e trabalhei uma horita. À noite o sono veio à hora das pantufas pesarem-me lentamente os olhos no sofá. Adormeci e acordei muitas vezes até de manhã. Hoje acordei sem voz nas palavras. Outra vez. Deve ser um vírus. Ou uma coisa qualquer, pior ou melhor. Quando não sabemos o que é, é um vírus. Já com as crianças é assim. Mas hoje também não precisava de falar, a minha Pintarolas e eu já quase dispensamos as minhas palavras. Ela dispensa de certeza, mas eu talvez goste de me ouvir a falar com ela, suponho que seja isto. Levantei-me e quis garantir-me que hoje não seria como ontem, que por muito que um dia de sofá me pareça fazer maravilhas à alma, também a faz pensar - de vez em quando e no meio do dia - o que raio estou eu a qui a fazer, a deixar o tempo passar sem ficar com nenhum... olhar para trás e não ter ficado nada. O que fica de um dia de filmes e chá e um bocadinho de trabalho? Nada, não fica nada. E quando não fica nada é porque desse tempo não guardámos nada, foi tempo que passou sem ficar. E talvez seja da idade, ou não sei de quê, mas a ideia de o tempo passar e não ficar começa a doer-me... ou a arranhar-me a consciência, talvez seja mais isso. Mas o certo é que penso isto tudo, vejo isto tudo, faço contas ao desperdício e a vontade não me empurra donde a culpa também não me consegue tirar... Só os outros me fazem mexer, aqueles que me ligam e dizem "anda, vem comigo vamos passear os patudos e respirar o tempo lá fora" e assim eu vou, até vou com vontade, a sério. Nem sempre, mas quase sempre. E chego à conclusão que realmente cada vez quero menos gente, cada vez gosto mais de estar sozinha, só comigo, mas que a vida me chega muito pelos outros, sem eles não atravesso a ponte. Ou raramente. Sem eles não chego ao tempo que fica. Não sei se é preguiça, ou se é a alma a deixar-se ficar adormecida, porque a dormir não sente. E agora se calhar anda a tirar férias de sentir, já sentiu demais, agora está afónica... ou se calhar a tentar fazer-se de morta. Ou está mesmo. 

domingo, 27 de outubro de 2024


 O sol já se escondeu e o ar ficou mais frio mais cedo. E faço aqui um compasso de espera só a olhar e a deixar fechar um fim‑de‑semana bom, de coisas minhas, novas e não tão novas. O corpo cansado, mas tranquilo. Dormi, aprendi, alonguei corpo e olhar, e ri-me, desfrutei do tempo, de mim e de quem me acompanhou. Não vou daqui mais eu do que cheguei mas com a sensação que vou mais plena do que cheguei. E o mar, o mar alimenta sempre a alma, o som, o movimento, as cores do céu que o alinhavam ao horizonte. Penso em tudo que ainda tenho de resolver em mim, tudo o quero e não quero para mim, e julgo perceber que na vida também haverá marés e tempo, se o quisermos escutar e viver.

sábado, 3 de agosto de 2024


Se cada um de nós se dedicasse a aprender e tratar a sua escuridão, o mundo teria muito mais luz. 
Esta frase - que saiu não sei de onde - anda a martelar-me a cabeça há uns tempos... acordei com estas palavras na cabeça há dias, e hoje, mesmo depois de dormir quase doze horas, continuaram a ecoar-me. Não havia outra solução senão escrevê-la. Às vezes só pondo as palavras do lado de fora de nós, elas sossegam. Só assim há uma hipótese de desaparecerem, ainda que muitas vezes nem assim... Não sei de onde me apareceu isto, mas penso que é muito verdade: se curássemos ou entendêssemos as nossas mágoas, os nossos pequenos grandes traumas, as nossas inseguranças, e se analisássemos e aprendêssemos com os erros que cometemos, se fechássemos os olhos ao mundo e os abríssemos para tudo o que vai construindo a nossa escuridão, o silêncio que nos faz, que não se fala, não se diz, não se mostra, não se entende e se arruma onde não conseguimos ver, a pensar que assim não atrapalha...  penso que cometeríamos menos erros e magoaríamos menos gente, o mundo seria melhor. Se eu o soubesse fazer bem, a minha filha seria mais feliz certamente. Há tantos traumas e inseguranças que passamos para os nossos filhos sem darmos verdadeiramente conta disso, alguns se calhar que ganhámos dos nossos pais. Muitos dos erros repetimo-los porque são o molde que nos deram, como se fosse o certo, quando é apenas o único que temos. Às vezes não sei o que de bom terei conseguido passar à minha pequenitates, mas tenho a certeza que lhe passei muita coisa que não devia, que ela não merecia, e até que eu não queria, só porque eu não soube lidar com muita coisa. É assustador pensar nisto e desta maneira, assim, mas se calhar a frase que me anda a martelar é isto mesmo... só cada um tratando da sua escuridão pode ensombrar menos quem nos rodeia.

segunda-feira, 29 de julho de 2024

 Alguém lá em cima anda a atirar luz ao chão. 

Parte-se, e racha toda a escuridão. Por momentos tudo é luz.

O estrondo vem depois.  Depois de tudo partido, sem réstia de luz.

É quase sempre assim em quase tudo.

O segredo deve estar em acertar no quase certo.

domingo, 28 de julho de 2024

 

Foi um calcorrear de jardins, hoje. Somos umas sortudas porque temos nas imediações de casa 3 dos jardins da cidade, que vamos aproveitando. A intenção é sempre sair cedo... tipo dez, dez e meia, que para mim, há uns aos, já seria madrugada, considerando que é fim de semana. Agora já não consigo dormir até à uma da tarde, ou é muito raro, lá para as dez começo a despertar mesmo que seja ficar na cama o que me apetece... e hoje aconteceu, ronha até quase às onze, depois saltei da cama. Pus umas leggings, t-shirt sapatilhas, boné e óculos de sol, e lá fomos nós para a nossa passeata sem rumo definido, o meu rumo favorito. Começámos pela Saudade, depois descemos, atravessámos o Botânico, saímos na Universidade, demos uma volta ali pela alta, depois descemos os Arcos do Jardim e fomos dar à Sereia. A cidade anda cheia de turistas, novos e velhos no passeio. Passei por um miúdo lindo, português, talvez pouco mais novo que a minha filha, uns olhos verde água, lindos, alegres mas meigos e um sorriso aberto, pelo menos foi isso que me dirigiu e eu passei com a quatro patas, e sorri também, mas fiquei a pensar quantas irão chorar por aquele. Não consigo deixar de pensar que quanto mais giros, mais parvos e menos a pena valem... mas haverá excepções, nem todos se tornarão convencidos e ocos. Acho que foi por ter esta ideia que sempre fugi de tipos de certo tipo. Ou melhor, não fugi, só não me diziam nada. Sim, são giros, olha-se e diz-se ah sim sim senhor, e pronto.  Mais tarde na vida comprovei a teoria. Eu estava certa. O melhor é olhar, sorrir, e seguir. Não perder tempo. E nós seguimos e andámos pela cidade uma hora e 5 kms, diz aqui a maquineta. Chegámos a casa derreadas e já passava do meio dia, com um calor que nos saía por todo o lado. Cheguei, comi uma fruta, despi-me e deixei-me aqui a descansar no sofá, com um café vagaroso, antes de ir ao banho. Devia fazer isto todos os sábados e domingos que não chovesse, faz bem à alma. Andei uma hora com a tracção às quatro por companhia, sempre feliz, e soube-me bem, não falei com ninguém, não levei sequer música nos ouvidos para entreter os pensamentos. Não, só eu e o tempo, o sol, e deixar a alma espraiar-se na luz que cobre as coisas, na brisa que suaviza o calor, a apreciar a sombra quando o sol aperta muito, ouvir a minha própria respiração e sentir o corpo. Sentir o corpo por dentro e saber que somos no mundo muito mais o por fora. E chegar a casa. Onde o por dentro e o por fora não se distinguem. Ou não deviam.

sábado, 20 de julho de 2024

 Insta. Instantaneo, mas não para mim. Serve há muito de album, de registo para o depois. Fica com pensamentos colado a imagens, para que não fujam, para que também eles possam ter um lugar guardado. Fica com os lugares com data, ainda que raramente no próprio dia. Talvez porque me demore a ver, ou porque os olhos precisam de mastigar o que vêem, e só depois poderem ser guardados para a posteridade. Hoje finalmente pus no album as fotos dos 18 anos da adulta pirralha. Foi em Maio... desta vez demorei demais. Mas foi quando foi, paciência. Ficou lá, com referência à data correcta, não vá um dia o Alzheimer trair-me e baralhar-me a data de nascimento da minha pequenitates. Enquanto punha as fotos no album pus-me a pensar como o instantâneo agora é um modo de vida, ou parece. É tudo instantaneo, o ver, o ouvir, o concluir, o dizer, o ser. Se calhar as únicas coisas instantaneas que gosto é o que é espontaneo... é a reacção espontanea, por ser a mais verdadeira ainda que não a certa tantas vezes. E tantas vezes já me desacertei por ter reacções demasiado instantaneas para pensar filtrar antes de dizer. Mas perdoo a espontaneidade com um sorriso que não encontro para a premeditação, para a manipulação. E é incrivel como a certo ponto da vida olhamos em volta e vemos muito mais manipuladores do que alguma vez pensámos poder existir. Até relativiza o desprezo que senti quando percebi a primeira verdadeiramente manipuladora com que a minha vida se cruzou...  concluo agora, como concluí na altura, que é uma coisa de poder sobre os outros, e de ego, com doses generosas de paciência e tempo. Nada mais... Mas voltando ao início, ao insta... o insta é sobretudo instantaneo, mas será espontaneo? e se fosse, o que veríamos lá? Menos felicidade talvez. E será a felicidade que gostamos de ver? Ou de espreitar?

segunda-feira, 15 de julho de 2024

Será sensato
descobrir o momento
em que se deve
deixar de escrever
e apenas
passar a limpo?


José Alberto Oliveira


Deixei de escrever há muito, sem quase dar por ela. Um adiar constante de algo que antes não conseguia adiar, saía-me dos dedos para não asfixiar alma, era uma necessidade quase básica, extravasar-me para me equilibrar. Deixei de escrever mas nada passou a limpo, nem tenho nada para passar a limpo, o que foi escrito na imperfeição do momento é o mais perfeito que consigo fazer, viver ou escrever. Sempre fui pela espontaneidade, pelo momento, pela vontade do momento que grita e não se quer calar e que eu não gosto, ou quero, calar. Como o silêncio que foi entrando e instalando-se nos dias. Foi acontecendo. Um silêncio diferente em mim,  um que não fala, que serve de fundo ao correr dos dias corridos, com o tempo contado, que não tem nada para contar. Que não nos deixa sequer querer parar para olhar para dentro do tempo. As voltas pela cidade, os cigarros fumados nas ultimas cores do dia, tudo agora perdeu lugar porque o tempo ocupou tudo com coisa nenhuma, ou às vezes assim me parece. As mesmas vezes em que chego a sentir falta de mim, de me encontrar, de me sentir. Ou talvez tenha andado a fugir de tudo isso, e de mim também.  Escrever sempre foi um encontro diário comigo, e talvez eu devesse ver-me mais vezes, conversar-me, sobre tudo e nada. Quanto menos se conversa menos se tem para conversar, de repente não temos interesse em falar, em pensar, em fechar os olhos e ver. Mas a essência é uma coisa meio selvagem, e mal nos distraímos abraça-nos e aí percebemos que há abraços que nos fazem falta. Aqueles em que nos encontramos.

domingo, 14 de julho de 2024

 Este fim‑de‑semana deu-me para as fotografias. Para organizá-las, guardá-las, e no caminho revê-las. Acabei por ver muitos anos, várias fases, momentos vários. E depois as de agora, da última viagem, dos últimos momentos registados, de quem falta agora nas fotografias. Dei por mim a rir-me algumas vezes, outras a ter vontade de chorar. Mas o que me fez pensar e parar e sentir, foi a diferença, a diferença em mim. Já não tenho gargalhadas nos olhos, agora trago nos olhos uma tranquilidade que não tive tempo de aprender. Como algo que me deram para tomar com os dias, ainda que sem receita ou recomendação. Algo que adormeceu partes de mim. Algo que aconteceu e instalou-se. E não é que não encontre gargalhadas nas fotografias agora, não é que o sentido de humor me tenha abandonado e partido para parte incerta, não é que agora me tenham deixado de assistir as parvoeiras da praxe, não… é só que os meus olhos já não gargalham. E isso vê-se. Ou eu vejo, nas fotografias. Há um brilho que falta. E vejo as fotos onde o via e vejo os anos e penso como é possível ser tão feliz e tão infeliz durante tanto tempo. Só é possível quando um lado e outro se equilibram de alguma forma, só é possível que tanto tempo passe e se continue quando o que é mau é tão mau se o bom for extraordinário. Se o bom fizer os olhos gargalharem com a vida, se houver uma comunhão com a vida, e com o sentido que ela nos faz. Mesmo que se chore muitas vezes. Há quem diga que devemos estar agradecidos por ter vivido algo assim, não sei se concordo, diria mesmo que não, mas o certo é que há pessoas que nunca chegam a ter gargalhadas nos olhos, nunca chegam a saber o que isso é. Nunca chegaram a sentir o que vejo em tantas fotografias no meu olhar. Mas as lágrimas todos experimentam duma forma ou doutra. Não estou agradecida. Não agradeço ver-me agora nas fotografias e não me ver ali inteira, ver-me numa tranquilidade que me foi trazida com todas e cada uma das perdas que fui guardando. Sim, eu guardo as perdas, religiosamente. E as gargalhadas. E a felicidade. Estão guardadas e vividas. Mas e agora? E é este “e agora?” que me faz escrever. Sair do meu silêncio confortável, essa música perfeita do meu fazer os dias. As perguntas, sempre as perguntas em mim como resposta para tudo. Ou para quase tudo. Foi nesse quase que acho que me perdi. De tudo. As gargalhadas já não brilham nos meus olhos.

sábado, 11 de maio de 2024


 Este ano seria outra capicua, ele 81, ela 18 no dia seguinte. A prenda dele, como dizia, um dia atrasada. Quando fez 70 ela fez 7, e foi uma festa. Não uma festa para outros, não foi um ajuntamento de convites e gente, foi uma festa para ele, estava feliz. Desta vez estaria de certeza também muito feliz, se cá estivesse. Fizemos só uma festa para nós, um jantar com todos. Há quem me chame muito moderna, eu não me acho nada moderna, mas sempre tentei ser justa e dar, e assegurar, à minha filha tudo o que acho que é direito dela. Isso sempre incluiu estar com os avós de ambos os lados igualmente, com o pai sempre que quisesse, e agora com o irmão e a mãe do irmão. E estavam todos, estávamos todos. A minha mãe ao meu lado, num dia bom, e o tio atrasado mas lá, como sempre.  A modos que foi uma mesa composta, e quem faltava também estava lá, na memória, na presença das expressões que usava, no coração cheio da neta que à hora de almoço, nesse dia, me manda uma mensagem a falar do avô. Porque estava a pensar nele e para que eu sentisse que ela estava a pensar nele. Os gestos por trás das palavras. Coisas dele, tão dele.
Às vezes, por estranho que seja, é surpreendente como algumas pessoas nos fazem falta. Muito mais falta, ausência, vazio, do que pensávamos que iríamos sentir. Talvez porque há pessoas que nos marcam de formas que não nos apercebemos até que não estão à distância dum telefonema, dum "vamos tomar um café", dum abraço, ou só dum olhar que nos acolhe como se nos abraçasse. O meu pai era uma pessoa infinitamente meiga ao mesmo tempo que distante. Íamos descobrir a ternura nos gestos, nas atitudes, no olhar, na aflição por nós. E agora encontro-o nos meus gestos, em muita da minha distância, em todos os meus princípios, e sempre a teimar na minha teimosia de quem acha que tem razão. Pergunto-me se apesar de estar todos os dias com a minha filha ficarei nela desta maneira, e se ela escolherá o melhor de mim para guardar. Sei que já sou mãe de uma adulta, mas que tem muito que crescer ainda, em vida, vivência, maturidade. Mas vi que estava feliz, vi que tem muita gente que genuinamente gosta dela e se preocupa com ela. Acabámos com dois bolos em cima da mesa, porque às vezes a mãe é despassarada e sem tempo, e podia não ter tratado do assunto, então para que ela não passasse os 18 sem soprar as velas no dia certo, trouxeram um bolo. Mas não fizeram alarido, e não iam dizer nada até que ouvi qualquer coisa dita ao empregado de mesa, para trazer aquele que eu tinha levado. Talvez com receio de eu não achar piada que alguém tivesse tratado disso que não a mãe, ou seja eu... mas não vi isso assim, achei bonita a preocupação com ela, o assegurar que ela não passaria sem cantar os parabéns e distribuir bolo. Pedi para trazerem os dois e dos dois se comeu. E os sobraram também :) Não sou moderna, não fiquei melindrada por a mãe do irmão pensar nela, fiquei agradecida. E aliviada, se algum dia algo me acontecer ela tem muita gente que gosta dela, que fará com que nunca lhe falte um bolo com velas para apagar. Espero que nesse dia ela se lembre, e sinta, como eu gosto dela, desta maneira moderna a que às vezes faltam palavras, evidências e declarações, mas em que a essência é essa coisa do amor que não se explica. E ainda bem.

sexta-feira, 12 de abril de 2024

 O discurso não muda, a conversa é a mesma. O mesmo fim de dia repete-se a cada vez. O futuro não chega ao passado, e até o presente se ausenta, como quem não existe e não se dá pela falta de comparência. Ainda deve chegar para o jantar, mesmo tendo morrido há mais de um ano.  Mas hoje, ao sair, o sol pôs-se de outra maneira, a luz deitou-se mais devagar, e dei por mim a vaguear pela cidade presa ao que não muda. E está tudo diferente. E não sei se mudei, se estou na mesma, nem sei se importa. Nem sei se posso dizer que me sinto diferente, que sinto diferente. Porque parece que não sinto nada. Só o vazio parece pesar mais, e os dias iguais com pores do sol que caem diferentes. Vem-me à memória uma frase “ só sei trabalhar, não sei fazer mais nada” e tem-se repetido este ecoar na minha cabeça, saltita em momentos dos dias, à superfície das horas, sem me deixar mergulhar em nada além do que tiver entre mãos. As mãos, as mãos sempre a fazer, e de repente sei que não devia ser só esse o verbo das mãos... Não quero pensar que me tornei no que nunca entendi. Não quero pensar. Queria uma sensação qualquer que me agarrasse, que me cravasse as unhas na pele até à alma. Queria o que eu fui para quem não quis viver além dos vazios, e da sensação da vida a cravar-se na pele nos interstícios dos dias, mas sem o perigo de agarrar a alma pelos colarinhos. Sem mudar os dias além da sensação deles, uma espécie de droga que se toma em horários mais ou menos certos, mas que não nos muda as horas. Queria ser para mim o que fui para outros, e não serviu a ninguém. Vagueio pela cidade, e vou fazendo curvas e mudanças de direcção, como quem muda de assunto numa conversa de tema inexistente, nunca sabemos onde nos leva, onde iremos chegar noite adentro. Vagueio pela cidade e pelas palavras que me navegam, que me mareiam das sensações ondulantes dos barcos parados. Vagueio, mas paro à minha porta, não entro. Não me encontro, e esse tem sido o meu descanso. Agradeço-o várias vezes ao dia, sem querer ter a consciência que o faço. Há mergulhos que se fazem de coragem e de olhos abertos, eu fechei os meus para dentro. Por dentro. De dentro. Não há o que ver, não há o que dizer. Só as palavras dançam, sem saberem onde a música as levará. Querem chegar ao silêncio pleno, mas esbarram no vazio. Nos dias. No trabalho que berra. E nas portas fechadas. Desta vez parece que fecharam a porta por fora. Se calhar fui eu. Só sei trabalhar, não sei fazer mais nada. Se calhar ainda bem. Mas não sabe bem. Também não sabe mal, quando os pores do sol não caem diferentes. O que é diferente muda tudo, sempre quis ser igual. E fui.