Por que me descobriste no abandono?
Com que tortura me arrancaste um beijo?
Por que me incendiaste de desejo
Quando eu estava bem, morta de sono?
Com que mentira abriste meu segredo?
De que romance antigo me roubaste?
Com que raio de luz me iluminaste
Quando eu estava bem, morta de medo?
Por que não me deixaste adormecida?
E me indicaste o mar, com que navio?
E me deixaste só, com que saída?
Por que desceste ao meu porão sombrio?
Com que direito me ensinaste a vida?
Quando eu estava bem, morta de frio
Chico Buarque
E eu, aqui, morta de sono,
pergunto-me porque beijo todos os dias
o beijo que não dou.
Pergunto-me porque me falam tanto tantas linhas
se já emudeci,
E aqui, quase morta de medo,
Pergunto-me como ainda há tantas perguntas
do que não tem resposta,
Pergunto-me porque há muito deixei de questionar-me,
e continuo feita de perguntas e de densos silêncios,
de noites sem estrelas e sem sono, mansas mas duras.
De desejos bravios, mas sossego na pele
Pergunto-me porque estou bem e não estou,
porque nada me falta e tudo me falta - ou quase.
Porque não quero e quero.
Porque sou e tu não és.
Porque és, e apenas foste.
E eu aqui, morta de frio.
Porquê?