quinta-feira, 25 de novembro de 2021


do fundo do armário:
as botas, há muito oferecidas
por quem me roubou caminho,
mas não me encolheu o passo,
nem me tolheu horizontes.
esgravatadas do profundo do tempo
voltaram a pisar o chão
e a levantar-me do frio descalço
dos dias que passaram
sem memória do tempo, do frio ou do chão
ainda sabem andar, de memória,
mas já ando melhor descalça
Não são as botas que andam,
são os meus pés

domingo, 21 de novembro de 2021

 

[foto @pauelini]

Um domingo destes.
Não uma manhã, 
um domingo,
assim. 

Nuvens lá fora a guardarem o sol,
Cá dentro.




Por que me descobriste no abandono?
Com que tortura me arrancaste um beijo?
Por que me incendiaste de desejo
Quando eu estava bem, morta de sono?

Com que mentira abriste meu segredo?
De que romance antigo me roubaste?
Com que raio de luz me iluminaste
Quando eu estava bem, morta de medo?

Por que não me deixaste adormecida?
E me indicaste o mar, com que navio?
E me deixaste só, com que saída?

Por que desceste ao meu porão sombrio?
Com que direito me ensinaste a vida?
Quando eu estava bem, morta de frio

Chico Buarque

E eu, aqui, morta de sono, 
pergunto-me porque beijo todos os dias 
o beijo que não dou. 
Pergunto-me porque me falam tanto tantas linhas 
se já emudeci, 
E aqui, quase morta de medo,
Pergunto-me como ainda há tantas perguntas 
do que não tem resposta, 
Pergunto-me porque há muito deixei de questionar-me, 
e continuo feita de perguntas e de densos silêncios,
 de noites sem estrelas e sem sono, mansas mas duras. 
De desejos bravios, mas sossego na pele
Pergunto-me porque estou bem e não estou, 
porque nada me falta e tudo me falta - ou quase. 
Porque não quero e quero. 
Porque sou e tu não és.
Porque és, e apenas foste.
E eu aqui, morta de frio.
Porquê?

segunda-feira, 15 de novembro de 2021

 


Wow... 
...que vista! adorei. Um jantar bom, uma noite daquele frio que nos faz aconchegar em nós, enroscarmo-nos no calor do corpo que a alma aquece. A garrafa de vinho ajudou, 'tá bem. Depois um cigarro lento, com a lua por testemunha, e uma volta pelas ruas do centro ao som de Benjamin Clementine, e combinou tão bem :) Um intimismo que nos sorri em silêncio, onde todos os nossos segredos conversam vidas inteiras que ainda nos esperam, ou talvez não. Há fins de dia, e noites inteiras que sabem saber tão bem.

domingo, 14 de novembro de 2021

[foto @jordanioo]
(o baloiço o ultimo reduto de toda a meninice... que eu ainda adoro, mas tantas vezes vazio demais)
 

Ontem acordei para uma nova realidade com o choro do minha filha no quarto, do outro lado do corredor. Levantei-me e fui ter com ela: o primeiro desgosto de amor, ou qualquer coisa que lhe cheira a isso mas lhe sabe mal, pelo menos na manhã de ontem. Muitas mais virão, a história é sempre assim. Como virão outras tantas de coração a transbordar e o brilho dos olhos a ofuscar o sol mais límpido. É assim, resta perceber que é, e tentar equilíbrios, gerir desgostos, prolongar os sorrisos. Um choro pegado, contínuo, uma dor que rasga por dentro, a mágoa do engano, o punhal de mentiras frescas. Não importa a idade, é tudo o mesmo, só que quando desfloram essa ignorância, essa primeira vez dói mais. A alma ainda estava intacta nessas dores. As primeiras feridas, como o primeiro amor, marcam mais, sentem-se mais, até demais. Dei-lhe o mimo que sei que não cura, como sei que nada cura estas dores nestes momentos, mas dei-lhe amparo em abraços, e aconchego como colo. Dei-lhe o que gostaria tantas vezes de ter tido, quando as manhãs me acordavam assim, ou parecido. Não importa a idade, é tudo o mesmo, só varia o numero de cicatrizes que cada um conta, e o que isso altera na alma, que é pouco, ou devia ser. Arranjei-lhe programa com as amigas à tarde para sair de casa e tentar distrai-se e poder dizer tudo o que a mim não sentia poder dizer. No fim do dia vieram para cá, fiz o jantar para todas e ela voltava a rir-se e eu a saber quanto duram esses risos e o que às vezes custam. Foi dormir, eu bebi uns copos de vinho no sofá, vi uns episódios duma vida que me arranca da minha e que procuro cada vez mais, adormeci, acordei, fui para a cama às cinco da matina. De manhã acordo antes dela, sei (desconfio) que vai acordar na mesma, ou parecido, espero pelo sinal. Não tarda. Entra-me no quarto a chorar,  com o telemóvel na mão: Olha mãe, olha isto...  Não importa a idade, é tudo o mesmo, e talvez seja bom sinal (será mesmo?) quando é assim, enquanto puderes manter os sentimentos e as emoções sem idade talvez a alma tenha menos rugas, mesmo que riscada de cicatrizes. É um equilíbrio difícil, talvez seja preciso que a alma seja grande(ou que não tenha tamanho, talvez), seja forte, resistente à dor e muito teimosa de sonhos... serão todas o mesmo? Acho que não. Oiço a minha filha, aninhada nos meus braços, entre soluços destroçados e risos roubados, e rezo para que a alma dela não seja como a minha. Não estarei para sempre do outro lado do corredor, e custa tanto quando não está ninguém. Tanto. A minha filha ainda não sabe. Não importa a idade, é tudo o mesmo. 

sábado, 6 de novembro de 2021

[foto @abdulgapurdayak]

Bom dia! 
Hoje apetece sol, folhas estaladiças debaixo das botas, ar fresco e aquele banquete das cores de Outono. Um café numa esplanada, um livro para mergulhar, que há tempos que não leio a sério. Depois voltar para o sofá, acender a lareira talvez, que já apetece e, há dias, sentir-lhes o cheiro no ar, deu-me vontades. E o dia começou mal, de madrugada com uma dor de cabeça monstra, que me obrigou a levantar para tomar um comprimido - um comprimido, eu, que só tomo sob ameaças... ou quando acho que estou a morrer... - agora apetece-me o dia, com a cabeça já dona de mim e não a dor. Talvez essa seja a grande diferença, quando deixamos as dores - quaisquer dores - tomar conta de nós nada nos apetece e a dor parece fazer sentido. E agora banho e rua.

 

sexta-feira, 5 de novembro de 2021

 É assim tão difícil amar? O que será preciso? Ter filhos, irmãos, pais, ser? Um coração maior onde caiba mais, onde caiba tudo? Ou um mais pequeno onde só caiba o que é tudo? Amar é ter um horizonte além do próprio umbigo? Ou encontrar o nosso umbigo em cada horizonte? É ver realmente o outro, ou olhá-lo e vermo-nos, voltarmos a nós? É conhecer o outro, ou reconhecermo-nos? É gostarmos do outro em nós, ou de nós no outro? É sentir felicidade por fazermos alguém feliz, ou por nos estar agradecido? E para amar, será bastante apenas existir, respirar? Ter nascido? Será que todos somos capazes de amar? Ou é preciso ter sido acarinhado protegido e amado? Ou temos de acreditar, acreditar na humanidade, no bem, no outro? Será que é coisa que morre com quem sabe amar? ou morre antes de morrermos? Será que se perde, que nos roubam, que nos podem matar essa capacidade, quando nos amputam dos sonhos em troca desilusões? O que é um sonho, senão o acreditar na possibilidade de algo que nos faria feliz? Amar é acreditar? Mas acreditar não é já assumir que não há razão, ou saberíamos ao invés de acreditar? Então Amar é ter fé? Em quê? Em quem? 


E não, não perguntem porque só me pergunto, não sabem que toda a resposta é apenas uma pergunta adormecida?

quarta-feira, 3 de novembro de 2021

 


Ontem encontrei um amigo. Estava feliz, está a viver uma história que queria. Há tempos tinha-me dito que não sabia se ia correr bem, mas que o que já tinha vivido com aquela pessoa, já ninguém lhe tirava. Os momentos que viveu, e que recordava, já ninguém os poderia apagar, roubar, tirar, diminuir. Como um saldo de felicidade intransmissível e eterno. Como dizia Kundera, cada segundo tem o peso da eternidade (ou qualquer coisa assim…). Pelo menos aqueles que recordamos e nos recordam de nós, acrescento eu. Hoje de manhã, enquanto guiava, lembrei-me disto. Percebi-o perfeitamente quando o ouvi dizer : “o que eu vivi com aquela pessoa já ninguém me tira”. Verdade.  E enquanto fazia pisca para mudar de direcção, a caminho sei lá de onde, ou em que direcção, lembro-me de pensar, há dias, ainda há dias, mesmo que poucos e cada vez menos, que a única coisa que eu queria é que me pudessem tirar isso. Em que a única coisa que queria que me pudessem tirar, era isso, só isso, isso que é impossível alguém tirar. Às vezes, ter sido feliz por momentos é um castigo e um fardo. Um saco demasiado pesado para se carregar. Que ninguém nos tira.

segunda-feira, 1 de novembro de 2021

 

[imagem @diego_cusano]

Ora, abóbora para isto… amanhã já acordo com o guinchar do despertador a horas que não apetecem… entretanto hoje o que fazemos? Trabalhamos, pois, e fazemos um tico de ronha para nos lembrarmos que a semana só começa amanhã, e vai acabar mais depressa que o costume.