[foto de Mikael Sundberg]
Há tempestades que nos extinguem. Primeiro o fogo, depois a vida. Duram demais duras demais, sobrevivem à vida que nasceu connosco, mas que morre antes de nós. Uma só gota transborda o copo. A voz de certas palavras como que, outra vez, nos puxa pelos colarinhos, arrasta-nos além do limiar da sobrevivência funcional. Deixamos de funcionar. Quebram-nos a ilusão duma possibilidade mecânica de realidade, onde nos movemos disfarçando normalidades que não nos cabem. Não funcionamos, o botão não liga, não obedecemos aos comandos, desligaram-se os fios que nos desligavam de nós, que nos mantinham distantes dos sítios onde nos sentimos - onde se sente a dor e a felicidade.
"Tens de fazer pela vida"... e os fios desligam-se.
Há anos - já lhes perdi a conta - que faço pela vida, por a continuar a manter, por acordar, por me forçar a funcionar, trabalhar e pagar as minhas contas. Por não me entregar à falta que me faz a vida. Mas não chega, tenho de fazer mais pela vida pelos vistos, é pouco. E tenho de concordar, porque vida isto não é. E as palavras, com voz e mote próprio voltam sempre, e sempre sem licença, vão tocando em pontos que vão doendo. Somos atirados para o abismo da solidão profunda, aquela que não se escolhe, mas se quer - cada vez mais -, onde o silêncio é bálsamo, é a armadura que nos defende, que nos protege de nos tocarem por dentro das feridas e nos rasgarem os finos fios que nos prendem às rodas do mundo. Aquela frase, não sei porquê (ou talvez sim) trouxe-me a história do burro, que quando finalmente estava habituado à fome, a lidar bem com não ter o que o alimentasse... curiosamente, morreu. De fome.
O copo transbordou. Abri mão, algo se partiu em mim, menos a vontade de partir. Tudo se inunda de água. E ninguém para apanhar os cacos.