sábado, 29 de abril de 2023

 Dia 15 deste mês, há mais de uma década, quando tinha a idade que eu tenho hoje, pôs-me a mão no pescoço e roubou-me o que, descobri depois, lhe queria dar. Sempre e todos os dias a partir daí durante muito tempo. Passado duas semanas fez anos. 

Hoje entra numa nova década. 

Ontem fechei parte duma etapa da minha vida, ou sinto isso, uma que me foi particularmente difícil atravessar, mais uma. Mas sinto-me livre, aliviada, e cheia de medo, mas com aquela a sensação de que fechei uma porta a um passado. Que se virou mais uma página. E ontem lembrei-me que hoje viraria uma década. Espero que a próxima década lhe traga o que quer, que seja feliz. Esta é a minha prenda, quero que seja feliz. Nunca o consegui dizer sem me sentir injustiçada, sem sentir que isso seria construído, vivido, em cima de toda a mágoa que me deixou, todo o sofrimento, desconsideração e desrespeito que sempre me dedicou, e até algum desprezo conveniente. Nunca o consegui dizer, e nunca o disse. Hoje quero que seja feliz, só. E que recupere todo o vocabulário que perdeu, se algum dia perdeu alguma coisa de facto.

Beijo

Escrevo-o aqui da mesma forma que sempre lhe dei todo o amor, todo o carinho, toda a ternura, toda a consideração e respeito, tudo o que de melhor encontrei em mim para lhe dar. É uma coisa de dentro para fora, de mim para o outro, é uma coisa que escrevo porque precisa de sair, que entrego porque preciso e porque quero. Tem só a ver comigo e nada com o outro. Com o outro receber ou não, ouvir ou não, ver ou não, perceber ou não. Merecer ou não. Retribuir ou não. É uma coisa minha, dos meus botões, das minhas contas interiores. É uma coisa de mim para mim, que precisa respirar e libertar-se, voar.

 Querido, mudei a casa!!

Adoro esta fotografia. 

Há um grito nela, que oiço.

E um gozo, que sinto.

E uma certa petulância desafiadora, que me fala. 

E um horizonte todo a testemunhar, desfocado mas ainda a deixar perceber as vistas largas.

A nudez debaixo do reflexo da água: uma fragilidade assumida é uma força disfarçada.

Não sei se já tinha mudado esta casa alguma vez, não me lembro, mas suponho que já tinha havido uma foto antes da que substitui agora. Há sempre alguma coisa forte que impõe esse tipo de mudanças, não sei porquê, mas porque este espaço é muito eu, identifico-me com tudo o que aqui aparece de alguma forma, e o mote é o nome daqui do tasco e a foto. A palavra e a imagem, duas coisas que em mim andam muito atracadas uma à outra. Hoje fez-me sentido esta mudança como se não a fazer não fizesse sentido, era algo que se impunha de facto, negá-lo seria deixar de ser fiel ao princípio. O que me lembra aquela máxima, que acho o máximo, que diz que temos sempre de mudar para conseguirmos mantermo-nos fieis a nós mesmos, para continuarmos os mesmos.

 

Fez precisamente ontem uma semana que mandei esta música às minhas pessoas mais chegadas, aquelas que me têm aturado e ouvido no último ano de martírio. Finalmente parecia que sim, que estava livre da situação. Ao fim de tanto tempo a aguentar tanta coisa e farta de tudo, consegui sair a bem e com tudo a que teria direito se não fosse eu a querer sair. Aguentei o inferno, mas fui guardando factos, e coleccionando argumentos que poderiam um dia fundamentar precisamente sair assim - pelo meu pé, mas como se não fosse. Verdade que acenei com algumas dessas coisas, verdade que apesar de dizer que me queriam a trabalhar lá, que eu era uma mais valia, eu se calhar dava muitos problemas e faziam-mo sentir, e não que seria uma mais valia. Dias antes da morte do meu pai, no dia seguinte a ter sido internado, cheguei a casa ao almoço e decidi, é agora, vou sair, chega. Queria chorar tudo duma vez e não conseguia, queria gritar e a voz desaparecia, estava toda eu um nó que não conseguia, ou sabia, desatar. Não consigo lidar com tudo, já não sinto chão de baixo dos pés, tudo parece areias movediças, e a minha sanidade mental começa a fazer-se sentir uma miragem. Lembrava-me insistentemente de me dizerem tantas vezes lúcida, consciente, analítica, e sentia que essa lucidez já não estava ao meu alcance, fugia-me por entre todas as merd@s que os dias, o quotidiano infernal me servia, dia após dia. Decidi isto,  acabou, vou sair.
Dias depois abriu-se um buraco no chão do meu caminho, onde parecia caber toda a minha vida, onde tinha caído toda a minha vida sem quaisquer notícias do seu paradeiro. Como se de repente tudo tivesse desaparecido, tudo tivesse sido sugado por uma escuridão que não se consegue combater, ou alumiar. "Parece que te passou um autocarro por cima", disseram-me na manhã que seguiu a pior noite da minha vida, e eu ri-me, deve ter sido um tractor, um TIR carregadinho, e estás a ser simpático, pensei. 
Duas semanas e pouco depois, arranjei forças e coragem para ter "a conversa". Disse tudo o que queria, não deixei que me levassem a conversa para onde eu não queria ir, deixei claro que não queria criar problemas, mas certa que se os houvesse eu tinha defesas, até trunfos. Deixei claro que a minha postura tinha sido sempre não criar problemas e não disputar o lugar que era meu, para que me chamaram e escolheram. Só me quero onde me queiram. Se não me querem não faço questão de estar, não vou disputar algo que só faz sentido se me quiserem lá, e foi essa sempre a minha postura. A próxima que vier poderá não pensar, ou ser, assim, e pode dar-se o caso de não se importar de se prestar a esse guerrear publico perante uma equipa que devia ser liderada de forma consistente e alinhada. 
Disse o que queria dizer, deixei nas entrelinhas o que queria deixar no ar - passei a mensagem, penso que da melhor maneira. Saí de lá aliviada e orgulhosa de mim, como há muito não sentia. Tinha sido capaz, tinha feito o que queria fazer, como queria fazer. Não sei onde fui buscar forças, ou onde fui buscar cara para parecer que as tinha, mas de alguma forma, consegui, e estava feito. 
Finalmente, e depois de demasiado tempo, envio esta música. Às minhas pessoas. Estou livre, disto, desta gente, desta forma de trabalhar e pensar, de muito sofrimento que me fui infligindo por ser assim, e não de outra maneira. Aprendi muito, também porque doeu muito e fundo, e é isso que levo daqui, uma imagem mais aproximada da raça humana. Aprendi muito,  mas muito pouco da actividade, do trabalho, aprendi que as pessoas só trazem a ambição e os fins para o trabalho, o resto, o ser humano, a espinha e o carácter, quero acreditar que deixam em casa de manhã quando saem. Ainda quero acreditar que não lhes falta completamente essa humanidade, essa réstia de decência e espinha. Nem todos são assim, e se chego ao ponto de destacar do conjunto pessoas que simplesmente são educadas e mostram respeito pelos outros, o que diz muito do nível da amostra que é a massa de trabalho desta multinacional (como sempre enchem a boca para dizer), o que não direi das pessoas que me ficam desta travessia do deserto humano. Há pessoas em todo lado que valem a pena, e depois de nos cruzarmos com elas, vão connosco para sempre. Levo uma mão de gente deste sítio, que gosto, que admiro, que respeito. Vou mais pesada do que cheguei, levo mais gente do que trouxe. Agradeço as perdas e os acréscimos, porque neste caso tudo me acrescentou. Estou livre. E desempregada. Agora quero um, no máximo dois, vá, meses de sabática, depois terei de pensar o que quero fazer, como e onde. 

Don't be afraid of your freedom
Freedom
I'm free to do what I want any old time
I said I'm free to do what I want any old time
I say love me, hold me
Love me, hold me
'Cause I'm free to do what I want any old time
And I'm free to be who I choose any old time

(mas sim, estou cheia de medo. de tudo.)

terça-feira, 25 de abril de 2023


 Não se nota, não se nota muito, eu sei. Mas hoje voltei a pintar as unhas desde há mais de dois meses. Mas não as consegui pintar de outra cor que não esta. Não me peçam para explicar, para explicar-me. São coisas que são assim como poderiam ser de outra maneira, porque não há razão. Há um sentir que é assim, que tem de ser assim, só porque sim. Ou porque não, que é das melhores razões para tudo que não é racional. Senão a melhor de todas. Porque gostas de mim? Porque sim. Não sei porquê, não sei explicar, não tem explicação, é assim e pronto. Tudo o que tem uma razão pode perdê-la por argumentação, por demonstração. O que não tem razão não pode ser provado errado, nem certo. É o que é, enquanto for. Essa incerteza, esse medo, não é para todos, não. Não há uma tábua a que nos agarrarmos enquanto tentamos nadar para a nossa costa. Não há nada. Só a vontade de chegar e de acreditar que estamos certos, que conseguimos. A razão é a melhor rede com que viver, mas há coisas que sem deixar a razão, sem tirar a rede, não se vivem. Não acontecem, não nos acontecem. Há anos neste dia, alguém me mandava uma mensagem enquanto vagueava pelas ruas enevoadas da cidade (o dia estava o contrário de hoje, cinzento, triste, fechado, nublado) “hoje é dia para uma revolução”. Não foi, nunca foi dia. Ou noite, e houve tantas madrugada dentro. O dia seguinte a uma revolução é dia de sermos adultos, de fazermos e assumirmos escolhas, de aguentarmos as consequências. Tudo o que, enquanto povo e nação, não estamos a fazer. Parecemos crianças a apontar dedos e a culpar o vizinho, o outro, o contexto, o tempo. Há pessoas assim, como há povos assim. Há pessoas que não sabem assumir revoluções, não sabem levantar a cabeça e esticar a espinha às consequências, até às mudanças que já aconteceram, já se instalaram, mesmo sem autorização. Preferem varrer para debaixo do tapete, fazer de conta que nada mudou, assobiar para o lado e rezar aos céus que tudo corra bem, e nada tenha mudado. Eu tive algumas pequenas revoluções para lidar, todos temos: decidir casar, ter filhos, decidir separar quando já não se está verdadeiramente junto. Depois há as que nos acontecem, que não são provocadas por nós, mas que temos de lidar, assumir, tratar e resolver, viver com elas.  As perdas, os cortes, as escolhas alheias, ou só a vida que se impõe sem que tenhamos uma palavra a dizer. Para a semana, se tudo correr como esperado, a minha vida estará diferente, e é uma pequena revolução, sim talvez, mas é minha, foi escolha minha. A partir daqui não sei, veremos, mas temos de assumir. As escolhas, as vontades, as nossas fraquezas, o que é maior do que nós, o que nos subjuga e nos obriga a reagir, ou não. Dependerá de cada um, suponho. Como é diferente para cada um o que não se sabe explicar, só sentir. E é assim porque sim. Um dia qualquer as minhas unhas vão voltar a ter cor, os dedos aneis, os brincos vão voltar a pendurar-se nas orelhas de haverá mais e outros colares. Ninguém notará nada, e eu não saberei explicar o que mudou, só saberei que é hora, porque sim. 

sábado, 22 de abril de 2023

 

Leva-me a dançar.

Leva-me a dançar num sítio cheio de gente onde ninguém me veja, onde a música seja só minha quando fechar os olhos e me esquecer do mundo com a tua mão na minha. Deixa-me gritar para dentro a liberdade que me custou tanto, tão fundo, e sorrir para fora como se nada tivesse custado e o tempo levasse tudo lavado num sorriso. Leva-me daqui para onde eu ainda estiver, resgata-me das garras dum tempo que nunca foi meu, duma criatura que nunca consegui ser. Que nunca quis ser. Leva-me ao cimo de todos os sonhos, onde as vistas se espreguiçam para lá de todos os horizontes, onde o sol se encosta, aninha, e espera a lua de pestaninha aberta. Amam-se na eternidade de mal se verem, mas esperarem-se a toda a hora, numa poesia sem palavras. Leva-me ao cimo dessa montanha, de todas as montanhas, vamos respirar fundo e encher de pureza a alma, senti-la de novo toda, inteira, como se nunca tivesse sido beliscada, esgaçada, rasgada e apunhalada. Como se estivesse inteira para confiar. Como se sítios sagrados a regenerassem, e acreditássemos de novo. Vamos sentir a poesia outra vez pela primeira vez. Vamos onde há um altar à vida, um lugar filho do luar,  pai de todos os pontos cardeais, com o mundo lá em baixo a rodear-nos por todos os lados, sem nos tocar.  Um alpendre que fala ao peso de cada passo nosso, para nos lembrar que há terra e raízes, e debaixo de todas as estrelas vamos banhar de luar a pele inteira. Vamos despir as noites do frio e vestir-nos de silêncio que fala de dentro. Anda, vamos fechar os olhos e respirar tudo em suspiros quentes, brincadeiras, sorrisos e gargalhadas frescas. Tudo o que sejamos nós e queiramos que o tempo seja. E vamos fingir que a vida é isto e que o resto são só pequenas pausas. Vamos brincar ao faz-de-conta que nada conta, senão o que queremos ver no meio da escuridão.

Leva-me como quem me resgata. Os sítios sagrados são sempre pessoas. Dança comigo.

sábado, 15 de abril de 2023


 Perguntam-me às vezes se ando a dormir bem. Não sei bem, não sei responder exactamente. Sei que durmo,  que fecho os olhos, que me esqueço se é dia ou noite, isso sei. Às vezes sonho, isso também sei. Sonhei com o meu pai há dias. Sei que o abracei muito nesse sonho que agora não recordo todo, mas isso lembro perfeitamente. Sei que nunca sei bem o que responder, porque durmo, mas dormir bem será outra coisa, parece-me. Dei por mim a responder ontem ou anteontem - já não sei... os dias enovelam-se num tempo que se embrulha sem se desenrolar, e a minha cabeça já não destrinça nada - "acho que sim, não sei... há dias em que parece que acordo no dia anterior. Mas afinal já é outro dia.". Como se só tivesse fechado os olhos por instantes. E é isto, esta sensação estranha de todos os dias serem o mesmo, mas outro. Cada dia não tem dia anterior, nem seguinte. É o mesmo. As mesmas perguntas de segundo a segundo, o arrumar vezes sem conta o que desarrumam sem saberem porquê, ou sabendo não quererem saber porque não pode ser, dar os comprimidos, ao fim do dia o jantar, tentar trabalhar um trabalho com um esperado e desejado fim à vista, mas que nunca mais se vê, fazer companhia que é só presença, porque companhia é conversa e troca de ideias, de vidas, de acontecimentos e sonhos, e aqui nada disso existe. Existe sempre o mesmo dia e esse pesadelo. E, ainda assim, cada dia tem muito de roleta russa, as perguntas são as mesmas, mas e a agressividade, será a mesma?, chegará a ser mais violento do que o psicológico desastre que já é? Estar ao pé de alguém que já não traz dentro a pessoa que era nossa, com quem ríamos, e falávamos, e trocávamos ideias, brincadeiras, conversas, medos e sonhos. E cada dia é um dia novo e o mesmo dia. Não há memória do dia anterior, nenhuma das milhentas perguntas respondidas ontem existiram, serão respondidas hoje, explicadas de novo. Segundo a segundo. Os olhos assustados e frágeis, ou carregados de ódio são repetições de fracções de dia. Do mesmo dia sempre. Todos os dias. 

Há dias em que acordo no dia anterior. Acho que são todos.