quinta-feira, 1 de dezembro de 2022



 Hoje foi dia de dormir mais um bocadinho, e quando a ronha já estava em boa medida, um camisolão, sapatilhas, óculos de sol e a trela com a tracção às quatro agarrada. A manhã estava boa e o sol estava com vontade de se esticar pelo céu inteiro. Lá fomos as duas fazer a ronda a alguns dos nossos sítios. Temos a sorte de ter vários jardins por perto, decidimos pelo habitual, atravessado por escadas e com relvado comprido para ela esticar as pernas... estava cheio de escuteiros, novos e velhos, portanto continuámos rumo ao próximo, que prezamos muito a nossa privacidade e as necessárias corridas dela. Chegadas ao novo ponto,  um banco vazio apanhava banhos de sol, soltei a pintarolas e sentei-me. Fiz de conta que o banco continuava vazio, quase não me mexi, estiquei as pernas e fui fechando os olhos. Apanhei o sol que roubei ao banco. Seguimos, num quase nada parece que estamos no meio de uma pequena floresta, hoje particularmente encantada, ou eu ando tão desencantada que me encantou por lá andar. O som da água que por ali corre em caminhos antigos, o cheiro a terra húmida que nos molha os sentidos, os jogos da luz que escapa entre os enormes abraços das árvores e nos beija a pele, as cores espalhadas pelo chão e na chuva de folhas que vai caindo aqui e ali, que nos faz sorrir o olhar por trás dos olhos. A pintarolas contente, a farejar tudo também, dum lado para o outro, a dar terra a comer às patas. Andámos por lá, subimos, descemos, voltámos a subir, e então, a olhar para os painéis de azulejos por que passávamos, parei. Olhei e a frase nasceu-me dentro sem consciência de a formular... "às vezes mesmo faltando uma peça tudo o resto continua a fazer sentido"... e olhei outra vez. E sim, fazia sentido. Faltava, mas fazia sentido. Talvez faltando procuremos mais no resto, e à volta, para perceber, para fazer sentido. Atentamos em coisas, que se nada ali faltasse, não repararíamos. Talvez nem tivesse parado. Talvez não me surgisse uma frase como que arrancada ao momento, arrancada aquele vazio que me escolheu o olhar. E estava nestes ramos intrincados de pensares sem pensar, que nunca se sabe onde vão dar, quando, olhando em volta me deparo com um pormenor, e sorrio. Sorrio depois também por fora. E resolvo tirar as fotos. A ironia - sempre a ironia, levemente sarcástica - inteligente da vida, das coisas, dos acasos. Ali não faltava peça nenhuma, melhor, não havia ali nenhum vazio. Ao longe não falta nada, ao longe passa por perfeito, antigo, conservado com o tempo que lhe passou, mas aparentemente inteiro. Não falta nenhuma peça. Mas falta. Mas não há vazio. Para tapar o vazio usou-se outra peça, uma que não é dali, que não faz sentido. Por muito que se olhe em volta nada faz sentido, e o que podia fazer parece impedido por aquilo, que destoa, e de repente não se vê mais nada: só a peça que não pertence, só o que não faz sentido. Parece que o olhar já nem foge em volta, para o contexto, para o resto, para lhe procurar o sentido, não. Ficamos ali presos, como se o olhar se reduzisse e só se prendesse no que não pertence, no que não é, no que não faz sentido. Para quem vê ao longe, nada se passa. Quem vê perto, depois não consegue ver mais nada. Prefiro o vazio, a possibilidade de imaginar, o procurar o sentido no que não falta, mas não destoa. 
Parecendo que não, fez-me tanto sentido, todo o sentido. Afinal tenho regido a minha vida exactamente assim. Vivo a minha vida de perto, não passo ao longe e não me interessa quem passa ou o que vê. Há todo um contexto que me abriga, que me dá e faz sentido. E há peças que me faltam. Prefiro assim do que tapar com algo de que depois não consigo tirar os olhos, porque não pertence ao contexto, a mim, ao que sou, à essência a que cada um se reduz. E se a minha essência for acalentar o vazio, seja. Faz sentido. Faz-me sentido, negar o vazio com qualquer coisa, não me faz sentido nenhum. O vazio é um lugar que pode ser ocupado, mas não tem de ser. O banco continuou a apanhar banhos de sol depois de me levantar, vazio, na sua plenitude de ser.
E depois de acabar de escrever isto, levanto os olhos do computador, e:

Faz sentido.
E já é de noite - lá fora quase, aqui dentro já completamente. Mas não acendo as luzes, acendo o primeiro cigarro do dia. E da noite.

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