quinta-feira, 29 de dezembro de 2022

 O problema de passear na cidade ao fim do dia, quase como forma de recuperar a alma que nos parece fugir, é que o carro parece conhecer os caminhos. Percorre-os quase de memória, quase como dizem da existência da memória da pele, meio inconsciente meio sábia. Acontece que acabo muitas vezes a ouvir os pingos cair, num silêncio forrado de escuridão e embrulhado em cidade. E depois de parar o carro e me entornar no silêncio que bebo, não me apetece mexer, não me apetece sair, apetece-me só existir assim, onde ninguém sabe que existo, onde o mundo não tem fios, onde as figuras são só figuras e os seres apenas existências, sem mais. Sem peso, sem ter de ser, sem se esperar nada e qualquer sítio ser destino. Onde a solidão se equivale ao verbo ser, e isso ser bom, isso ser livre. Existir apenas, sem medidas, sem quereres, sem consciência do sentir. Não há liberdade quando se sente. Sentir é um emaranhado de fios que ora nos faz dançar como não sabíamos poder, ora nos embrulha e paralisa. Sem fios, não precisamos de rede, e as redes são só fios. Aqui, assim, com a chuva a entrar pela fresta da janela debaixo dum candeeiro amarelado, não há fios, ou parece que não. Por um bocadinho.

sábado, 24 de dezembro de 2022


 O Natal há muito deixou de fazer grande sentido para mim. Já não gosto de andar atrás de prendas, e ao mesmo tempo de toda a gente…parecemos todos ratinhos numa roda em que nos puseram… já não tenho o mesmo prazer nas luzes de natal, parece darem a badalada para seguirmos para a dita rodinha … Dantes gostava de passear à noite de carro, sozinha quase sempre, pela cidade vestida de Natal. Agora, não me perguntem porquê, mas já não me aconchega o por dentro. Tenho pena, de facto, mas já não tem esse efeito. Há coisas que ao longo da vida vão deixando de ter o mesmo efeito. Algumas lamenta-se que assim seja, outras agradece-se. Não sei dizer bem o que o Natal é agora para mim. Este ano, mais que nos outros, vai ser cozinha e tentar oferecer aos meus pais, irmão e filha, um jantar como eram os jantares em casa dos meus pais, só que na minha, e meu. Com lareira, mas sem árvore de natal, com doces mas sem arroz-doce. Um Natal onde está gente que já não está… na toalha que herdei de uma avó que não conheci, numa loiça oferecida por um tio que adorava os pratinhos espalhados de passas com pinhões (não gosto, mas vão estar por aí), nas receitas dos doces herdadas. Ninguém desaparece enquanto os lembrarmos e os falarmos e lhe usarmos as expressões, e às vezes, em conversas mudas, onde lhes pedirmos conselhos em que precisamos de amparo, além de sabedoria. Já aqui disse, para me enfiarem na cozinha é preciso muito amor. E hoje vou lá passar o dia. E talvez seja isso, mais que qualquer outra coisa, o Natal, amor, amor pelos nossos, pelos que temos dentro e queremos, principalmente esses - essencialmente. Se todos assim fizessem não haveria tanta solidão, suponho.,. E sim, amor também pela humanidade no geral… mas estou tão céptica em relação à humanidade, e tão cada vez mais, que acho que é mais uma utopia, que um real desejo. 
Olhei a fotografia e disse: é isto “love right “, ama direito, bem, de jeito, entrega-te e dá o que tens de bom, e recebe direito, porque amar parece-me que é uma rua de dois sentidos, ou terá outro nome, e não será amor. Amor é saber dar e saber receber, mimo, carinho, cuidado, atenção, respeito, mau feitio às vezes, opiniões diferentes tantas… sentirmo-nos casa no aconchego do outro. Haver um lar onde a intimidade está impregnada no ar que se respira. E onde respiramos fundo. 

Love right, nunca à sinistra. 

O amor não é uma imposição, é uma benção, um bónus, uma sorte até. Nem todos os meus são da família, e nem toda a família faz parte dos “meus”. Família nem sempre é amor, mas o amor faz a (nossa) família.

Bom Natal a todos, perto de todos os que gostam e querem bem, e preferencialmente longe da cozinha :) para onde vou agora, sem hora prevista de conclusão de tarefa… espero que dê tempo pelo menos de nao ir para a mesa jantar de pijama, como estou :D 

quarta-feira, 14 de dezembro de 2022

 Não nos ensinam a chorar, e talvez devessem. Alguém, algures na nossa infância, devia ensinar-nos. Talvez assim crescêssemos e houvesse menos afogamentos em seco, menos asfixia pelo lado de dentro do silêncio. Talvez nos conseguíssemos livrar de algum peso, ou alguma mágoa, ou aquelas coisas que doem caladas, tanto, que nos habituamos a isso, como uma respiração interna que nos acompanha a outra e já nem distinguimos. Nunca fui muito de chorar. Choro de choque, ou pela impotência prolongada, suponho. De dor física, também, as outras eu acomodo, assobio para o lado enquanto as arrumo, ou tento. Fecho janelas com vista para essa realidade, mergulho num casulo de dormências e finjo que vivo onde os outros me vêem. Nunca usei o choro como adereço de cena, ou alavanca de negociação, nunca. A última vez que chorei foi um eco de outro choro que não consegui amparar, ou evitar, ainda não consigo, e se calhar é por isso que choro. A impotência perante a dor de quem amamos é uma dor que ressoa em vagas próprias e demolidoras. Não devíamos ver os nossos pais chorar, é como arrasar todas as defesas que ainda sentimos que nos protegem. A última vez que chorei foi assim, a última vez acordada, porque acordo muitas vezes de sonhos a chorar. Acordo a soluçar, como se acordada esse modo me estivesse vedado, inacessível. Acordo e paro de chorar. Como se o mundo não o permitisse. Hoje se fosse dessa tribo amiga das lágrimas acho que tinha chorado, tinha-me desabado um pouco para se segurar inteira de alguma parte. Mas não. E agora aqui, sentada a ver chover lá fora, com a cabeça a estalar como refracção do dia, gostava de poder chorar o que me angustia, o que me chateia, aliviar o que dói e não sei anestesiar, só entreter para dissipar com o começo de um qualquer novo dia, que de novo não concebe nada. 
Haverá curas de choro?... se calhar preciso duma dessas, chorar uma semana inteira, por tudo o que me quis convencer que não valeria as lágrimas que se vertessem, mas que guardadas dão de beber a tristezas que nunca morrem à sede. E outra semana por tudo o que me convenço que aguento em pé, enxuta de fraquezas de que me faço forte. Quando os que são fortes não se fazem de nada, apenas são. 

domingo, 11 de dezembro de 2022

A «PERIGOSA» MULHER

«Será que com o passar dos anos as pessoas se vão incapacitando de partilhar intimidades, assumindo uma atitude de auto-protecção?... É que aos 3… anos concluí que nunca amei realmente e que as relações amorosas pouco intensas desgastam, são trabalhosas, cansativas e mornas, é como chover no molhado. Acho que só me vou disponibilizar para viver sentimentos fortes, profundos, arrebatadores, ou seja, quentes! Isto escrito fica com mau aspecto! Quase rasca, mas escrevo-o no bom sentido. Até pareço um perigo, estou surpreendida comigo mesma!» (13.09.95.)



Pois eu não!, ouço relatos semelhantes há mais de vinte anos. Por que se protegem as pessoas, lembram ainda nódoas negras passadas? Muitas vezes sim, o povo diz que gato escaldado de água fria tem medo. Mas não raramente é uma forma de estar na vida, o celebérrimo sobrolho franzido face à paixão - ao longo dos séculos partilhado por Igreja e Medicina - ainda rumoreja nas profundezas. A cultura ocidental habituou-se a venerar os grandes amores, mas a dar como adquirido que são funestos. Suspiramos de inveja ao escutar a histórias de Romeu e Julieta e contudo sabemos que tinha de ser assim, não os imaginamos casados e nervosos pela subida das taxas de juro. Em sociedade de consumo, resignamo-nos a procurar o melhor negócio afectivo possível – a estabilidade, sem grandes expectativas, mas com prazo de validade garantido.

E no entanto a ouvinte falava das relações pouco intensas como esgotantes, dir-se-ia à beira de esgotamento provocado por namoricos sem importância. Primeiro aviso à navegação: subestimamos com frequência o peso das experiências emocionais e físicas, por as decretarmos amores de verão as suas marcas não desaparecem, necessariamente, antes do Inverno (a ordem das estações do ano é arbitrária).

Porque as descreve como «cansativas, trabalhosas, mornas, chovendo no molhado»? O que esperamos das relações? Uma fatiazinha de transcendência. A sensação de que saímos de nós e do quotidiano rumo às nuvens, não por acaso alguns dizem ser o amor a experiência religiosa por excelência em sociedades laicas. Mas quando chove no molhado a água chegou antes da água, a que cai do céu não traz nada de novo, trata-se de uma repetição, de mais do mesmo.

A nível emocional a frase traduz a verificação de que determinada relação se revelou incapaz de despertar em nós algo de verdadeiramente diverso. Que nos presenteie com um sorriso beatífico, os colegas no emprego abanam a cabeça porque a nossa anda por outros lados, «será que telefona?». O cansaço referido surge porque se mantém, com esforço, uma ligação em que verdadeiramente já não se acredita. Jogar pelo seguro não chega, pressentimos dentro de nós a pergunta angustiante, «será este o meu limite, não consigo ir mais longe?».

(...)

Mas já não é mau que se tenha surpreendido a si própria, descobriu-se apaixonada pelo projecto de se apaixonar, aposto que o resto aconteceu entretanto. Com garantia de felicidade para sempre? Nem por sombras! Mas, para empregar a sua expressão, o «passar dos anos» ensina-nos que mesmo as nódoas negras permitem que acompanhemos Neruda na sua límpida confissão, nada penitente: «Confesso que vivi.» E quem o não absolveria de tal pecado?

Júlio Machado Vaz,  ESTES DIFÍCEIS AMORES, 2002

E tu, viveste? 
E eu, terei vivido?
Concordo e confesso que o oco me esgota, me cria uma exaustão dos dias. A desilusão quotidiana corrói-nos o esqueleto e verga-nos à mediocridade se deixarmos. Nunca fui disso, nunca preferi qualquer coisa, qualquer faz-de-conta, àquilo que quero; e quando não sabia ainda o que queria, àquilo que me preenchia, ao que me fazia sentir viva. Se não for intenso que deixe o vazio por preencher, para que haja lugar quando surgir, e se surgir. Ninguém sabe. Suponho que com a idade é cada vez mais raro sentir-me viva, e fazerem-me sentir viva, plena na crença da possibilidade de algo bom. Mas não me faz - ou ainda não fez - baixar a fasquia, suponho que até se tornou mais difícil. Porque agora sei o que é sentir-me realmente viva, como se o mundo não me assustasse. Também sei quão enganador tudo na vida pode ser - e mais que tudo, as sensações que vão para além de nós, do limite da nossa pele que guarda o nosso ser. Tudo para além disso é enganador. Nunca sabemos nada de ninguém, nunca. Podemos pensar saber, podemos até resolver arriscar por pensar saber, mas temos de o fazer com a consciência que não, não sabemos de facto. Às vezes nem de nós verdadeiramente sabemos, quanto mais do outro. Temos de abraçar o risco em consciência, e saltar o abismo. E depois, lidar com ele, torne-se o abismo no que se tornar.
Tenho a ideia que ninguém se apaixona sem que seja surpreendida, já o digo há muito, porque acho que é isso que primeiro nos prende a atenção e o resto... alguma coisa diferente, nova, que não conhecíamos e que nos surpreende - que nos desperta, como diz o texto - , que nos faz querer sempre mais. Ver mais, ouvir mais, conversar mais, conhecer mais, e descobrir tudo. Como uma droga quase, de que nos tornamos ligeiramente dependentes para levantar voo. Para conhecer todos os voos. Passada esta fase, do deixar de ser novo tudo o que vimos, que aprendemos e interiorizamos, que absorvemos, então, passamos a admirar verdadeiramente todas essas coisas que agora, através do outro, fazem parte de nós, e que dantes estavam escondidos algures numa gaveta que nunca tínhamos aberto, que nunca nos tinham mostrado de nós. Sim, porque parte do que descobrimos no outro é também nosso, são partes de nós - descobrimo-nos através do outro, penso que é isto. Todo o novo mundo que nos mostram é um mundo nosso, e de que queremos fazer lar por o sentirmos tanto a nossa casa. Como um lugar que reconhecemos, e a sensação ser de voltar a nós, de renascer - de reconhecimento mais que qualquer outra coisa, provavelmente. Acho que é também isso que nos faz querer sempre mais, porque nos faz estar bem connosco, e o mundo parece até fazer algum sentido com toda a força da vida. 
E viver talvez seja isto. Acreditar e depois confrontar essa crença desfeita, sem desistir dela, no fundo. Cada vez mais exigente, cada vez mais dolorosa, cada vez mais perfeita também. Estranho, não?

quinta-feira, 1 de dezembro de 2022



 Hoje foi dia de dormir mais um bocadinho, e quando a ronha já estava em boa medida, um camisolão, sapatilhas, óculos de sol e a trela com a tracção às quatro agarrada. A manhã estava boa e o sol estava com vontade de se esticar pelo céu inteiro. Lá fomos as duas fazer a ronda a alguns dos nossos sítios. Temos a sorte de ter vários jardins por perto, decidimos pelo habitual, atravessado por escadas e com relvado comprido para ela esticar as pernas... estava cheio de escuteiros, novos e velhos, portanto continuámos rumo ao próximo, que prezamos muito a nossa privacidade e as necessárias corridas dela. Chegadas ao novo ponto,  um banco vazio apanhava banhos de sol, soltei a pintarolas e sentei-me. Fiz de conta que o banco continuava vazio, quase não me mexi, estiquei as pernas e fui fechando os olhos. Apanhei o sol que roubei ao banco. Seguimos, num quase nada parece que estamos no meio de uma pequena floresta, hoje particularmente encantada, ou eu ando tão desencantada que me encantou por lá andar. O som da água que por ali corre em caminhos antigos, o cheiro a terra húmida que nos molha os sentidos, os jogos da luz que escapa entre os enormes abraços das árvores e nos beija a pele, as cores espalhadas pelo chão e na chuva de folhas que vai caindo aqui e ali, que nos faz sorrir o olhar por trás dos olhos. A pintarolas contente, a farejar tudo também, dum lado para o outro, a dar terra a comer às patas. Andámos por lá, subimos, descemos, voltámos a subir, e então, a olhar para os painéis de azulejos por que passávamos, parei. Olhei e a frase nasceu-me dentro sem consciência de a formular... "às vezes mesmo faltando uma peça tudo o resto continua a fazer sentido"... e olhei outra vez. E sim, fazia sentido. Faltava, mas fazia sentido. Talvez faltando procuremos mais no resto, e à volta, para perceber, para fazer sentido. Atentamos em coisas, que se nada ali faltasse, não repararíamos. Talvez nem tivesse parado. Talvez não me surgisse uma frase como que arrancada ao momento, arrancada aquele vazio que me escolheu o olhar. E estava nestes ramos intrincados de pensares sem pensar, que nunca se sabe onde vão dar, quando, olhando em volta me deparo com um pormenor, e sorrio. Sorrio depois também por fora. E resolvo tirar as fotos. A ironia - sempre a ironia, levemente sarcástica - inteligente da vida, das coisas, dos acasos. Ali não faltava peça nenhuma, melhor, não havia ali nenhum vazio. Ao longe não falta nada, ao longe passa por perfeito, antigo, conservado com o tempo que lhe passou, mas aparentemente inteiro. Não falta nenhuma peça. Mas falta. Mas não há vazio. Para tapar o vazio usou-se outra peça, uma que não é dali, que não faz sentido. Por muito que se olhe em volta nada faz sentido, e o que podia fazer parece impedido por aquilo, que destoa, e de repente não se vê mais nada: só a peça que não pertence, só o que não faz sentido. Parece que o olhar já nem foge em volta, para o contexto, para o resto, para lhe procurar o sentido, não. Ficamos ali presos, como se o olhar se reduzisse e só se prendesse no que não pertence, no que não é, no que não faz sentido. Para quem vê ao longe, nada se passa. Quem vê perto, depois não consegue ver mais nada. Prefiro o vazio, a possibilidade de imaginar, o procurar o sentido no que não falta, mas não destoa. 
Parecendo que não, fez-me tanto sentido, todo o sentido. Afinal tenho regido a minha vida exactamente assim. Vivo a minha vida de perto, não passo ao longe e não me interessa quem passa ou o que vê. Há todo um contexto que me abriga, que me dá e faz sentido. E há peças que me faltam. Prefiro assim do que tapar com algo de que depois não consigo tirar os olhos, porque não pertence ao contexto, a mim, ao que sou, à essência a que cada um se reduz. E se a minha essência for acalentar o vazio, seja. Faz sentido. Faz-me sentido, negar o vazio com qualquer coisa, não me faz sentido nenhum. O vazio é um lugar que pode ser ocupado, mas não tem de ser. O banco continuou a apanhar banhos de sol depois de me levantar, vazio, na sua plenitude de ser.
E depois de acabar de escrever isto, levanto os olhos do computador, e:

Faz sentido.
E já é de noite - lá fora quase, aqui dentro já completamente. Mas não acendo as luzes, acendo o primeiro cigarro do dia. E da noite.