A «PERIGOSA» MULHER
«Será que com o passar dos anos as pessoas se vão incapacitando de partilhar intimidades, assumindo uma atitude de auto-protecção?... É que aos 3… anos concluí que nunca amei realmente e que as relações amorosas pouco intensas desgastam, são trabalhosas, cansativas e mornas, é como chover no molhado. Acho que só me vou disponibilizar para viver sentimentos fortes, profundos, arrebatadores, ou seja, quentes! Isto escrito fica com mau aspecto! Quase rasca, mas escrevo-o no bom sentido. Até pareço um perigo, estou surpreendida comigo mesma!» (13.09.95.)
Pois eu não!, ouço relatos semelhantes há mais de vinte anos. Por que se protegem as pessoas, lembram ainda nódoas negras passadas? Muitas vezes sim, o povo diz que gato escaldado de água fria tem medo. Mas não raramente é uma forma de estar na vida, o celebérrimo sobrolho franzido face à paixão - ao longo dos séculos partilhado por Igreja e Medicina - ainda rumoreja nas profundezas. A cultura ocidental habituou-se a venerar os grandes amores, mas a dar como adquirido que são funestos. Suspiramos de inveja ao escutar a histórias de Romeu e Julieta e contudo sabemos que tinha de ser assim, não os imaginamos casados e nervosos pela subida das taxas de juro. Em sociedade de consumo, resignamo-nos a procurar o melhor negócio afectivo possível – a estabilidade, sem grandes expectativas, mas com prazo de validade garantido.
E no entanto a ouvinte falava das relações pouco intensas como esgotantes, dir-se-ia à beira de esgotamento provocado por namoricos sem importância. Primeiro aviso à navegação: subestimamos com frequência o peso das experiências emocionais e físicas, por as decretarmos amores de verão as suas marcas não desaparecem, necessariamente, antes do Inverno (a ordem das estações do ano é arbitrária).
Porque as descreve como «cansativas, trabalhosas, mornas, chovendo no molhado»? O que esperamos das relações? Uma fatiazinha de transcendência. A sensação de que saímos de nós e do quotidiano rumo às nuvens, não por acaso alguns dizem ser o amor a experiência religiosa por excelência em sociedades laicas. Mas quando chove no molhado a água chegou antes da água, a que cai do céu não traz nada de novo, trata-se de uma repetição, de mais do mesmo.
A nível emocional a frase traduz a verificação de que determinada relação se revelou incapaz de despertar em nós algo de verdadeiramente diverso. Que nos presenteie com um sorriso beatífico, os colegas no emprego abanam a cabeça porque a nossa anda por outros lados, «será que telefona?». O cansaço referido surge porque se mantém, com esforço, uma ligação em que verdadeiramente já não se acredita. Jogar pelo seguro não chega, pressentimos dentro de nós a pergunta angustiante, «será este o meu limite, não consigo ir mais longe?».
(...)
Mas já não é mau que se tenha surpreendido a si própria, descobriu-se apaixonada pelo projecto de se apaixonar, aposto que o resto aconteceu entretanto. Com garantia de felicidade para sempre? Nem por sombras! Mas, para empregar a sua expressão, o «passar dos anos» ensina-nos que mesmo as nódoas negras permitem que acompanhemos Neruda na sua límpida confissão, nada penitente: «Confesso que vivi.» E quem o não absolveria de tal pecado?
Júlio Machado Vaz, ESTES DIFÍCEIS AMORES, 2002
E tu, viveste?
E eu, terei vivido?
Concordo e confesso que o oco me esgota, me cria uma exaustão dos dias. A desilusão quotidiana corrói-nos o esqueleto e verga-nos à mediocridade se deixarmos. Nunca fui disso, nunca preferi qualquer coisa, qualquer faz-de-conta, àquilo que quero; e quando não sabia ainda o que queria, àquilo que me preenchia, ao que me fazia sentir viva. Se não for intenso que deixe o vazio por preencher, para que haja lugar quando surgir, e se surgir. Ninguém sabe. Suponho que com a idade é cada vez mais raro sentir-me viva, e fazerem-me sentir viva, plena na crença da possibilidade de algo bom. Mas não me faz - ou ainda não fez - baixar a fasquia, suponho que até se tornou mais difícil. Porque agora sei o que é sentir-me realmente viva, como se o mundo não me assustasse. Também sei quão enganador tudo na vida pode ser - e mais que tudo, as sensações que vão para além de nós, do limite da nossa pele que guarda o nosso ser. Tudo para além disso é enganador. Nunca sabemos nada de ninguém, nunca. Podemos pensar saber, podemos até resolver arriscar por pensar saber, mas temos de o fazer com a consciência que não, não sabemos de facto. Às vezes nem de nós verdadeiramente sabemos, quanto mais do outro. Temos de abraçar o risco em consciência, e saltar o abismo. E depois, lidar com ele, torne-se o abismo no que se tornar.
Tenho a ideia que ninguém se apaixona sem que seja surpreendida, já o digo há muito, porque acho que é isso que primeiro nos prende a atenção e o resto... alguma coisa diferente, nova, que não conhecíamos e que nos surpreende - que nos desperta, como diz o texto - , que nos faz querer sempre mais. Ver mais, ouvir mais, conversar mais, conhecer mais, e descobrir tudo. Como uma droga quase, de que nos tornamos ligeiramente dependentes para levantar voo. Para conhecer todos os voos. Passada esta fase, do deixar de ser novo tudo o que vimos, que aprendemos e interiorizamos, que absorvemos, então, passamos a admirar verdadeiramente todas essas coisas que agora, através do outro, fazem parte de nós, e que dantes estavam escondidos algures numa gaveta que nunca tínhamos aberto, que nunca nos tinham mostrado de nós. Sim, porque parte do que descobrimos no outro é também nosso, são partes de nós - descobrimo-nos através do outro, penso que é isto. Todo o novo mundo que nos mostram é um mundo nosso, e de que queremos fazer lar por o sentirmos tanto a nossa casa. Como um lugar que reconhecemos, e a sensação ser de voltar a nós, de renascer - de reconhecimento mais que qualquer outra coisa, provavelmente. Acho que é também isso que nos faz querer sempre mais, porque nos faz estar bem connosco, e o mundo parece até fazer algum sentido com toda a força da vida.
E viver talvez seja isto. Acreditar e depois confrontar essa crença desfeita, sem desistir dela, no fundo. Cada vez mais exigente, cada vez mais dolorosa, cada vez mais perfeita também. Estranho, não?