quinta-feira, 10 de agosto de 2023

 Na cozinha com duas cadeiras a fazer de cama, uma almofada na parede para encostar a cabeça, conto respirações de luz apagada, abro os olhos quando por um bocado não oiço nada… o meu coração pára, talvez também ele para tentar escutar melhor. Depois volta a respiração curta e quase em esforço, ainda que menos do que aquele que ouvi e me fez fazer de duas cadeiras uma cama. Há duas horas contei 65 respirações por minuto, os batimentos cardíacos desisti porque eram de tal forma confusos acelerados e fortes que desisti, antes que com o pânico quem tivesse um ataque fosse eu. Agora conto entre 35 e 40 depende. Parece-me que a este ponto depende do sonho que o grisalho cá de casa está a ter. Eu por mim estou num pesadelo há horas… desde que o fui buscar ao hospital dos peludos. Que estava tudo bem, fora de perigo, dois dias depois de entrar por ali a dentro com ele por um fio pela minha estupidez. Não vi na véspera que temperaturas iam estar; os dias de muito calor tinha ouvido nas notícias eram no fim‑de‑semana, depois começavam a baixar. Deixei muita água e deixei-o a sombra depois de lhe dar de comer. Seguiu-se um dia de trabalho, fora daqui como sempre nos dias que correm, a uma hora daqui, quase. E a caminho, atrasada, para não variar, fico a saber que esperam temperaturas de 40 graus… deu-me um aperto, mas achei que estando à sombra, num sítio coberto e com bastante água não haveria problema grave. Estou sozinha, filha de férias longe, irmão de férias mais longe ainda, a senhora que vai fazer a limpeza de férias. E eu a quase uma hora. Liguei para quem estava no prédio para assegurar que ainda havia água nas bacias, e que o moço estava à sombra. Sim senhor a tudo, fiquei mais descansada, confesso. Quando chego a casa a correr escadas acima abro a porta para o pátio de trás e vejo a quase morte a ofegar, os olhos vidrados quase ausentes, não se mexia, reagiu à minha voz pareceu-me. Corri a buscar a bacia com água deitei-lhe um pouco no focinho, fui buscar uma taca pequena e enfiei-lhe água pela goela abaixo. Não se mexia, e arfava como quem foge à frente da morte com ela quase nos calcanhares. Ligo para as urgências, o que faço? Trazê-lo? Ele n se mexe… mas tem de ser, não há outra maneira respondem-me. Ok, nem que o carregue as costas. E foi, não as costas mas  em peso, até ao abençoado elevador que me levaria à garagem. É preciso a chave para o elevador ir até à garagem. Está no chaveiro, com a chave de casa, que na confusão... ficou em casa, do outro lado da porta fechada… ia morrendo eu. Lembrei-me que desde que estou sozinha tenho uma suplente guardada, porque sei que a minha cabeça é tonta e que um dia qualquer isto podia acontecer. Claro que nunca imaginei que estivesse numa tal emergência. Corro, literalmente, subo desço, volto. Finalmente o elevador tem como descer até à garagem. Abro o portão, o carro ficou lá fora ao sol. Domingo esqueci-me de o por na garagem. Se houvesse um Euromilhões ao contrário eu ganhava se jogasse. Certinho direitinho, não há outra hipótese. Pego no bicho em peso, ponho-o aos pés do lugar do morto e rosno com este pensamento. Fecho a porta dou a volta ao carro a correr, tudo sempre a correr, desvairada. Ligo o carro, o ar condicionado no máximo e só para os pés. Não sei como não atropelei ninguém, ou não me desgracei em modo automotor, acho que cheguei ao veterinário em minuto e meio, e entro por la com o cão quase debaixo do braço, só que ele não é do tamanho de um porta chaves… vai directo para debaixo de água. Termómetro, acima de 40 graus. Olha para mim como quem grita, lá dum sítio fundo e de voz sumida. Passam 5 minutos, talvez menos, talvez mais, sei lá. Termómetro. Desceu mais de meio grau. Mais água, álcool porque (aprendi) quando evapora com a água dissipa o calor do corpo. Mais chuveirada no pelo, até que chega à temperatura normal. Eu não falo, não digo nada, olho, oiço, tento pensar se será possível que aquele moço de 14 anos e uns trocos ultrapasse aquilo. Começa a beber água do chão do sítio onde estão a molha-lo, começa a estar presente na cena, a parecer até o quanto lhe está a saber bem a água, começa a sentir-se melhor. Começa a sentir, parece. Já respira devagar. Mais devagar que agora, parece-me, o meu coração dá-se conta que bate, já me sinto respirar. Talvez. Só talvez. Mas reagiu e pode ser que… talvez. Mandam-me para casa e vai lá ficar para o dia seguinte, a soro e análises. As próximas 24 horas são críticas. No dia seguinte o medo das notícias, ligo, nada, depois ligam-me. As análises podiam estar pior face ao episódio de calor e idade. Tem de se repetir ao fim da manhã. E depois de feitas acusaram teimosia extrema, evoluíam positivamente. Tinha-o apanhado e trazido a tempo. Mas ainda não saiu da zona de perigo. E eu não saí de certeza, digo que é melhor ficar mais um dia. Tenho medo de o levar  para casa, pesquisei no Mr Google e os três, quatro dias podem revelar consequências que as primeiras 24 horas podem ocultar. Fica mais um dia internado, mas vou ve-lo ao fim do dia. Está vivaço, levanta-se com alguma genica, bebe água e come com vontade. O meu coração respira de alívio, a culpa larga o lastro de uns tantos quilos… "foi uma sorte, eu estava céptico-  dizia o médico -, e a olvido branca, nem falava, mas chegou cá em tempo recorde e devemos ter feito tudo bem, porque se amanhã continuar assim ,está fora de perigo" não há indicadores que levem a pensar diferente. À tarde liga-me. Ele está bem, e tem alta. Hoje. Há bocado ao fim do dia, mas quer fazer um exame ao coração. Continua com respiração acelerada e ofegante, já não havendo razões para isso... e tem de haver uma razão. Fez o exame e descobriu, tem o coração grande demais - brinco e digo, isso eu já sabia, mas não sei se me entenderam - e continua, ocupa quase a caixa torácica toda, não deixa espaço para os pulmões trabalharem normalmente, e está já a pressionar a traqueia... pois, quem tem o coração grande demais, respira mal muitas vezes, como quem tem um peso no peito, sempre a pressionar. Também já sabia disso, penso para mim, mas não digo, calo. Não me entendem, mais vale o silêncio. E fui buscá-lo e achei que não estava espevitado como ontem. Já em casa acho-o cansado, prostrado, derrotado e quase em esforço para respirar. Sinto-o quente, ponho uma toalha molhada no corpo passo no focinho e orelhas. Não melhora, passado um tempo acalma um pouco. Não estou descansada. Vou buscar as mantas para ficar com o rabo menos quadrado nas cadeiras a fazer de cama. Fecho as luzes. Ponho-me a contar respirações e as horas de sono que não vou ter, mas não consigo sair daqui. Não que faça alguma coisa, não faço, porque não sei o que fazer, senão esperar pela manhã para ligar outra vez. Dizer que alguma coisa não está bem. Ajudem-me. Ajudem-no. Que eu contar respirações por minuto não ajuda a coisa nenhuma, mas não sei que mais fazer para que o coração bata com jeito e não em modo descompensado e sem regras. Tenho sono e uma reunião às 10. E um irmão que tem direito a ainda ter cão quando regressar, a não se sentir culpado por ter ido três semanas de férias quando precisava de três meses, porque quem deixou cá a tratar do cão, do limoeiro, do jardim, do correio, do resto da canzoada e da papelada não conseguiu fazer as coisas bem, com jeito.  É certo que o cão tem o coração grande, agora atestado com radiografia cheia de razões, mas podia ter evitado o calor, deixava-o dentro da cozinha, ainda que não evitasse lavar a cozinha todos os fins de dia. E agora conto respirações e rezo para que nos próximos dias tenha razões para ter de lavar a cozinha todos os dias quando chegar ao fim de um dia de trabalho. 43 respirações neste minuto e três sustos. 

(E não vou reler não me apetece, deve estar cheio de gralhas, paciência, também eu)

sábado, 5 de agosto de 2023

 

Um calor de ananases… e eu a visitar hábitos antigos… Esplanada e café, um livro para começar, um café a que falta uma pedra de gelo. E aquele pacote de açúcar irresistível. Intacto, agora e depois, mas irresistível ao registo. Ao menos ao açúcar o café faz falta. A mim também. 



 As meninas e as sombras. Ou as meninas das sombras. Ou as meninas da luz, daquele dourado de fim de dia que alimenta a alma, que descansa o dia que ainda corre nas veias dos pensamentos, sempre a correr, sempre contra o tempo, sempre a tentar comer os atrasos que vão embrulhando as horas do dia, e a  evitar outros que acontecem, porque têm de acontecer por muito que se corra e combata. Mas depois, esta luz, esta cor a pintar as paredes da minha sala. Sento-me no braço do sofá, como tantas vezes, a olhar para fora, a ver as cores mágicas do sol a desaparecer devagar atrás do horizonte do nosso olhar. E é nessa dança lenta e lânguida que nasce esta magia das cores de fogo lento, que aquece, que conforta, que se instala na alma muito depois de olhar já não as encontrar. As meninas ficam doidas com as sombras na parede, com as formas, com os movimentos. Olham a parede como nós olhamos quadros em grandes museus para lhes apreciar a arte e a beleza, e ficam ali, assim a ver as coisas que vêem, sempre à espera do próximo momento, do próximo movimento, do enigma desse jogo de sombras, que apenas escondem a luz que está lá sempre, por trás das sombras. As sombras são também luz, sem luz não haveria sombra. Escuridão não é sombra, escuridão é ausência de luz, se alguém se habitua à escuridão deixa de abraçar a luz, passa a fechar os olhos de estranheza se algum fio de sol lhe invade os dias, um dia deixa de a reconhecer suponho. A escuridão não engana, não tem formas para adivinhar, não há movimentos para observar, não há ilusões de óptica que nos fazem pensar que algo nos toca, nos afaga ou nos morde, quando a realidade está longe disso. A escuridão come até a vontade de luz, torna a luz incómoda, inconveniente. Como em tanta coisa, há vezes em que fechamos os olhos porque não queremos ver mais, ao contrário daquela frase de "depois de abrir os olhos, depois de se ver, não se consegue deixar de ver". Consegue, escolhemos a escuridão. Escolhemos não ser abalados pela magia, não sentir calor. Sombras não é escuridão. Na escuridão não há cores douradas que chamam a noite pela mão, numa dança lenta, lânguida e cheia de prazer,  em que os sentidos se inebriam do momento e ao mesmo tempo duma antecipação de algo que nos acelera o sangue que não pensa. E eu, aqui, vejo luz e sombras na parede, viro costas à janela por momentos e volto os olhos para a parede, para o improvável.  Vejo este quadro que leva a outros, porque uma sombra leva a outra, como uma luz traz outra luz. Por trás de cada sombra há uma luz que foi calor, que foi vida, que foi magia, é quando essa luz fica em nós que devolvemos sombras, sombras que só vemos porque ao redor há luz sobre todas as coisas.