Na cozinha com duas cadeiras a fazer de cama, uma almofada na parede para encostar a cabeça, conto respirações de luz apagada, abro os olhos quando por um bocado não oiço nada… o meu coração pára, talvez também ele para tentar escutar melhor. Depois volta a respiração curta e quase em esforço, ainda que menos do que aquele que ouvi e me fez fazer de duas cadeiras uma cama. Há duas horas contei 65 respirações por minuto, os batimentos cardíacos desisti porque eram de tal forma confusos acelerados e fortes que desisti, antes que com o pânico quem tivesse um ataque fosse eu. Agora conto entre 35 e 40 depende. Parece-me que a este ponto depende do sonho que o grisalho cá de casa está a ter. Eu por mim estou num pesadelo há horas… desde que o fui buscar ao hospital dos peludos. Que estava tudo bem, fora de perigo, dois dias depois de entrar por ali a dentro com ele por um fio pela minha estupidez. Não vi na véspera que temperaturas iam estar; os dias de muito calor tinha ouvido nas notícias eram no fim‑de‑semana, depois começavam a baixar. Deixei muita água e deixei-o a sombra depois de lhe dar de comer. Seguiu-se um dia de trabalho, fora daqui como sempre nos dias que correm, a uma hora daqui, quase. E a caminho, atrasada, para não variar, fico a saber que esperam temperaturas de 40 graus… deu-me um aperto, mas achei que estando à sombra, num sítio coberto e com bastante água não haveria problema grave. Estou sozinha, filha de férias longe, irmão de férias mais longe ainda, a senhora que vai fazer a limpeza de férias. E eu a quase uma hora. Liguei para quem estava no prédio para assegurar que ainda havia água nas bacias, e que o moço estava à sombra. Sim senhor a tudo, fiquei mais descansada, confesso. Quando chego a casa a correr escadas acima abro a porta para o pátio de trás e vejo a quase morte a ofegar, os olhos vidrados quase ausentes, não se mexia, reagiu à minha voz pareceu-me. Corri a buscar a bacia com água deitei-lhe um pouco no focinho, fui buscar uma taca pequena e enfiei-lhe água pela goela abaixo. Não se mexia, e arfava como quem foge à frente da morte com ela quase nos calcanhares. Ligo para as urgências, o que faço? Trazê-lo? Ele n se mexe… mas tem de ser, não há outra maneira respondem-me. Ok, nem que o carregue as costas. E foi, não as costas mas em peso, até ao abençoado elevador que me levaria à garagem. É preciso a chave para o elevador ir até à garagem. Está no chaveiro, com a chave de casa, que na confusão... ficou em casa, do outro lado da porta fechada… ia morrendo eu. Lembrei-me que desde que estou sozinha tenho uma suplente guardada, porque sei que a minha cabeça é tonta e que um dia qualquer isto podia acontecer. Claro que nunca imaginei que estivesse numa tal emergência. Corro, literalmente, subo desço, volto. Finalmente o elevador tem como descer até à garagem. Abro o portão, o carro ficou lá fora ao sol. Domingo esqueci-me de o por na garagem. Se houvesse um Euromilhões ao contrário eu ganhava se jogasse. Certinho direitinho, não há outra hipótese. Pego no bicho em peso, ponho-o aos pés do lugar do morto e rosno com este pensamento. Fecho a porta dou a volta ao carro a correr, tudo sempre a correr, desvairada. Ligo o carro, o ar condicionado no máximo e só para os pés. Não sei como não atropelei ninguém, ou não me desgracei em modo automotor, acho que cheguei ao veterinário em minuto e meio, e entro por la com o cão quase debaixo do braço, só que ele não é do tamanho de um porta chaves… vai directo para debaixo de água. Termómetro, acima de 40 graus. Olha para mim como quem grita, lá dum sítio fundo e de voz sumida. Passam 5 minutos, talvez menos, talvez mais, sei lá. Termómetro. Desceu mais de meio grau. Mais água, álcool porque (aprendi) quando evapora com a água dissipa o calor do corpo. Mais chuveirada no pelo, até que chega à temperatura normal. Eu não falo, não digo nada, olho, oiço, tento pensar se será possível que aquele moço de 14 anos e uns trocos ultrapasse aquilo. Começa a beber água do chão do sítio onde estão a molha-lo, começa a estar presente na cena, a parecer até o quanto lhe está a saber bem a água, começa a sentir-se melhor. Começa a sentir, parece. Já respira devagar. Mais devagar que agora, parece-me, o meu coração dá-se conta que bate, já me sinto respirar. Talvez. Só talvez. Mas reagiu e pode ser que… talvez. Mandam-me para casa e vai lá ficar para o dia seguinte, a soro e análises. As próximas 24 horas são críticas. No dia seguinte o medo das notícias, ligo, nada, depois ligam-me. As análises podiam estar pior face ao episódio de calor e idade. Tem de se repetir ao fim da manhã. E depois de feitas acusaram teimosia extrema, evoluíam positivamente. Tinha-o apanhado e trazido a tempo. Mas ainda não saiu da zona de perigo. E eu não saí de certeza, digo que é melhor ficar mais um dia. Tenho medo de o levar para casa, pesquisei no Mr Google e os três, quatro dias podem revelar consequências que as primeiras 24 horas podem ocultar. Fica mais um dia internado, mas vou ve-lo ao fim do dia. Está vivaço, levanta-se com alguma genica, bebe água e come com vontade. O meu coração respira de alívio, a culpa larga o lastro de uns tantos quilos… "foi uma sorte, eu estava céptico- dizia o médico -, e a olvido branca, nem falava, mas chegou cá em tempo recorde e devemos ter feito tudo bem, porque se amanhã continuar assim ,está fora de perigo" não há indicadores que levem a pensar diferente. À tarde liga-me. Ele está bem, e tem alta. Hoje. Há bocado ao fim do dia, mas quer fazer um exame ao coração. Continua com respiração acelerada e ofegante, já não havendo razões para isso... e tem de haver uma razão. Fez o exame e descobriu, tem o coração grande demais - brinco e digo, isso eu já sabia, mas não sei se me entenderam - e continua, ocupa quase a caixa torácica toda, não deixa espaço para os pulmões trabalharem normalmente, e está já a pressionar a traqueia... pois, quem tem o coração grande demais, respira mal muitas vezes, como quem tem um peso no peito, sempre a pressionar. Também já sabia disso, penso para mim, mas não digo, calo. Não me entendem, mais vale o silêncio. E fui buscá-lo e achei que não estava espevitado como ontem. Já em casa acho-o cansado, prostrado, derrotado e quase em esforço para respirar. Sinto-o quente, ponho uma toalha molhada no corpo passo no focinho e orelhas. Não melhora, passado um tempo acalma um pouco. Não estou descansada. Vou buscar as mantas para ficar com o rabo menos quadrado nas cadeiras a fazer de cama. Fecho as luzes. Ponho-me a contar respirações e as horas de sono que não vou ter, mas não consigo sair daqui. Não que faça alguma coisa, não faço, porque não sei o que fazer, senão esperar pela manhã para ligar outra vez. Dizer que alguma coisa não está bem. Ajudem-me. Ajudem-no. Que eu contar respirações por minuto não ajuda a coisa nenhuma, mas não sei que mais fazer para que o coração bata com jeito e não em modo descompensado e sem regras. Tenho sono e uma reunião às 10. E um irmão que tem direito a ainda ter cão quando regressar, a não se sentir culpado por ter ido três semanas de férias quando precisava de três meses, porque quem deixou cá a tratar do cão, do limoeiro, do jardim, do correio, do resto da canzoada e da papelada não conseguiu fazer as coisas bem, com jeito. É certo que o cão tem o coração grande, agora atestado com radiografia cheia de razões, mas podia ter evitado o calor, deixava-o dentro da cozinha, ainda que não evitasse lavar a cozinha todos os fins de dia. E agora conto respirações e rezo para que nos próximos dias tenha razões para ter de lavar a cozinha todos os dias quando chegar ao fim de um dia de trabalho. 43 respirações neste minuto e três sustos.
(E não vou reler não me apetece, deve estar cheio de gralhas, paciência, também eu)