domingo, 30 de novembro de 2025

Sou uma impudência a mesa posta
de um verso onde o possa escrever.
Ó subalimentados do sonho!
A poesia é para comer.

Natália Correia

Estar vivo
é abrir uma gaveta
na cozinha,
tirar uma faca de cabo preto,
descascar uma laranja.
Viver é outra coisa:
deixas a gaveta fechada
e arrancas tudo
com unhas e dentes,
o sabor amargo da casca
de tão doce,
não o esqueces.

Luís Filipe Parrado

Eu sou agora desses subalimentados. 

Já não sei comer poesia, já não consigo apreciar sonhos. Faltam-me os dentes para trincar a laranja com casca, já não sei respirar a vida, por muitas técnicas de pranayama que tenha aprendido, só me chega o oxigénio para sobreviver. Falas de mim Natália, agora faço parte desse clube, dos desdentados, dos sem unhas para esgravatar a superfície dos dias, os minutos, os segundos, aqueles instantes dos momentos eternos que vão esculpindo o olhar da vida. Que abrem gavetas com os dentes e caminhos à catana da vontade ardentemente urgente. Agora uma pedra é uma pedra... e às vezes calhaus, onde pessoas sorriem alegremente. Mas não, calhaus. Já não há sorrisos que saiam pelos olhos, que sejam só olhar e uma pedrada no charco dos dias. A poesia foge até dos poemas que lemos sem mergulhar, das flores que vemos sem sentir, do tempo que passa sem esgaçar. E então tudo parece outra palavra para desperdício, sem se sentir a inutilidade do desperdício, parece sempre que se está em busca de algo, há sempre uma cenoura no fundo da linha, que às tantas com os olhos postos no horizonte às vezes nos perguntamos se afinal a queremos... mas depois deixamo-nos de devaneios e levantamo-nos para mais um dia, em que uma pedra é uma pedra, as laranjas se descascam com parcimónia e pouca fome, e o dia são vinte e quatro horas que alguém mede.

sábado, 22 de novembro de 2025

[foto @kat_in_nyc ]

O tempo que passa leva o silêncio. À medida que envelhecemos o mundo tem cada vez menos silêncios, cada coisa ganha voz, ocupa as possibilidades, preenche-as, fecha-as, tornam-se espaços fechados onde dentro estão sempre pedaços de nós. Hoje de manhã abri a janela enquanto o ar se enchia de café, queria respirar o dia novo, e com isso renovar o tempo em mim, inspirar silêncios ainda por escrever. Abri a janela e fechei os olhos para sentir o frio do ar por dentro do quente do corpo. Abri os olhos com o sinal do café servido e vi a laranjeira despida em frente, e o muro que lhe serve de guarda enrugado pelo tempo molhado das chuvas, sempre húmido, e ouvi - claro como o bater do meu coração - a conversa entre o meu pai e o meu irmão “estes terrenos têm muita água, corre muita água por aqui que não vemos”. Aquele muro, que no inverno tantas vezes jorra água das entranhas, nunca mais foi silêncio. A cada vez fala-me, traz-me aquela conversa, a água que não se vê mas que corre por dentro das coisas. Há anos atrás ele não falava, ainda era silêncio. À medida que envelhecemos o Mundo tem cada vez menos silêncios porque as memórias falam alto quando respiramos lento o suficiente para as ouvirmos... Afinal... acho que é o tempo que não passa que leva o silêncio.