sábado, 28 de outubro de 2023

 

[trabalho @virgola_]

As costuras já não esgaçam assim, já nada transborda, a força das coisas antigas começa a ser, sinto-a  conscientemente antiga, quase suave, quase. Dou por mim dentro do carro, a acabar um telefonema, e a lembrar-me que à porta desta padaria ou pastelaria ou o que for, anos atrás estava eu naquela mesa, que parece estar na montra, prefere-se aquela porque lá dentro tem a luz toda e vista para fora. De fora, parece que se está na mesa da montra, mas de dentro não há montra, há rua. São perspectivas, é bom que haja muitas e diferentes. Eu estava lá, numa tarde de sábado ou domingo, não sei precisar, e ainda bem, quando poisam as duas tostas que encomendámos, mas  chegam quando já só eu estava sentada naquela mesa. E olhava para fora, para a cena que se passava lá fora enquanto uma das tostas arrefecia, ali deixada e ignorada. Pedida, mas largada. Comi a minha quente, matou a fome. A outra, já fria e intocada, deixada na mesa matou muitas outras coisas. A cena lá fora acabou, sairam vários carros. As vozes deixaram de se ouvir. Eu tomei o café já com o espaço la fora apenas a ser outono e luz e nuvens. Era outono, acho. Para mim era outono. Com esta luz que parece meio adormecida, mas que acorda coisas em nós para adormecer outras que às vezes gritam. Paguei o que se consumiu e o que ficou por consumir. Peguei no carro para voltar a uma casa que nunca encontrei. Chamaram-me casa algumas vezes, nunca chamei casa a ninguém, que me lembre. Casa é o sítio onde podemos sempre regressar e despirmos o mundo à porta, onde nos sentimos seguros e livres ao mesmo tempo. Nunca senti ter a segurança dessa morada em ninguém. Mas cheguei onde moro, depois de muitas voltas à cidade e telefonemas e desculpas. Hoje estou aqui à porta e recordo. Mas já não me transborda a dor e a raiva, a incompreensão de tudo, as costuras da ferida já não rebentam, nem sequer esgaçam. As costuras já não esgaçam assim. 

Vou comprar pão e vou para casa. Agora vou para casa. Fechar a porta por dentro é tão bom.